A Idade Digital e o conhecimento

Jo Pires-O’Brien

Muitos observadores sociais já apontaram que Idade Digital supervalorizou a informação e trivializou a cultura. Mas as incursões à Idade Digital também ocorrem no terreno da ficção, como a do personagem ‘Morador do Café’ criado pelo escritor americano, nascido no Egito, R. F. Georgy, que compara a internet a um palácio de cristal e este à caverna de Platão, o reduto da ignorância humana absoluta, no seu livro Notes from the Café (2014). Sofrendo de câncer e com pouco tempo de vida o Morador do Café vive a sua grande crise existencial. As suas reflexões e críticas sobre a Idade Digital aparecem em diálogos imaginários com ex-colegas da academia e outras pessoas. O Morador do Café é um velho que, além de indignado e contraditório, encontra-se desmemoriado. Ele tem uma vaga lembrança de ter sido um professor de filosofia, embora não consiga lembrar o próprio nome. Suas colocações são mais um esbravejamento de um velho opinioso tentando passar a vida a limpo. Eis algumas citações (tradução minha) do Morador do Café acerca da Idade Digital:

‘Eu me lembro de uma época quando a informação se curvava perante a sabedoria. Hoje, a informação tornou-se pomposa e arrogante.’

‘Vocês sabiam que nós vivemos numa era na qual os peritos e os especialistas se tornaram os profetas da nossa época, na qual os atores e os jogadores de esportes são heróis mitológicos, e a mediocridade é virtude.’

‘A idade digital não sabe o que fazer dos professores…// Então, vocês não sabiam que hoje em dia os professores são controlados e manipulados pelas empresas de publicação que têm um interesse em passar todas as atividades de ensino para o palácio de cristal virtual?’

‘A idade digital não precisa de professores; não senhores, a idade digital precisa de gestores de informação para manter o nosso palácio virtual se movendo. Esses gestores de informação logo serão substituídos por professores digitais que irão ‘facilitar’ a aprendizagem.’

‘Os cafés não são mais para engajarmos em conversação estimulante. Não senhores, eles são feitos para as pessoas irem lá, com os seus laptops e telefones inteligentes,  encontrar um canto a fim de escapar do mundo.’

‘Nós confundimos a informação com o conhecimento, e o conhecimento resultante da informação de alguma forma passa por sabedoria.’

‘O homem moderno não é menos uma criatura de conhecimento do que um escravo da informação. Vocês não perceberam que nós nos tornamos viciados na informação.’’

O homem é estúpido por natureza. Ele é estúpido ao extremo e o pior é que ele não sabe da própria estupidez.’

‘Digam-me, do que a idade digital nos liberou? Nós mudamos da convivência com as sombras para tornar-nos prisioneiros das nossas cavernas privadas. É isso o que a idade digital nos trouxe.’

‘Quem é que precisa de pessoas quando temos essa caixa mágica para nos ocupar por toda a vida? Nós não fomos liberados, senhores, nos fomos aprisionados pela nossa própria arrogância.’

A Idade Digital é apenas um tentáculo do monstro da modernidade, segundo o Morador do Café. Na citação abaixo, ele conta porque acredita em Deus, embora o alvo do seu ódio seja a ciência:

‘Você quer saber se eu creio em Deus?… Eu acredito em Deus por raiva. É isso, não fique tão espantado. De raiva da ciência eu acredito em Deus. Veja você, o mundo moderno me dá duas opções: acreditar num constructo que já foi completamente desmascarado e exposto como um conto de fadas, ou submeter à fria indiferença da ciência. Eu escolho o conforto do constructo. Eu escolho acreditar num conto de fadas ao invés de ser enganado pela sedutora lógica da ciência.’


Nota. Texto extraído do ensaio ‘O conhecimento do indivíduo’ de Joaquina Pires-O’Brien, publicado em PortVitoria, 10, Jan-Jun 2015.