As democracias da América Latina

Jo Pires-O’Brien

Na primeira década do século XXI os peritos sobre a política da América Latina notaram a diversidade das suas democracias, a preferência do eleitorado de diversos países pela Esquerda e a tolerância ao autoritarismo dos governantes. Em 2004 o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, UNDP, publicou um relatório intitulado A Democracia na América Latina, analisando os enormes problemas da região no tocante ao funcionamento do processo democrático através do balanço de poderes. O objetivo deste relatório é servir de base para o debate crítico dentro de cada sociedade.

Uma publicação independente sobre o desenvolvimento humano em todo o mundo e que completou 21 anos em 2011, é o Índice de Desenvolvimento Humano (HDI) comissionado pela UNDP. O objetivo do HDI foi servir de alternativa ao sistema vigente de medir o desenvolvimento de cada país apenas pelo crescimento econômico, e para enfatizar que os critérios fundamentais de avaliação do desenvolvimento são as pessoas e suas capacidades. O HDI utiliza uma série de sub-relatórios temáticos dentre os quais está o da Governança Democrática, que analisa nove descritores da democracia: Sociedade Civil, Corrupção, Descentralização, Democracia, Governança, Direitos Humanos, Participação, Empoderamento Político e o Papel do Estado. O relatório de 2011 foi o mais completo de todos, incluindo um total de 187 países e territórios.

A organização Freedom House, que estuda a eficácia das democracias em termos de garantir liberdade, apontou a enorme diferença entre as democracias latino-americanas. Com o emprego de uma série de indicadores de práticas democráticas e liberdade a Freedom House avalia cada país e atribui uma nota de 1 a 7, onde 1 representa o nível mais alto de liberdade e democracia e 7 representa o nível mais baixo. A fim de facilitar a comparação entre países e permitir que cada país acompanhe a sua própria evolução democrática, quatro grupos de democracia e liberdade foram definidos com base nessa pontuação. Os países de Grupos 1 e 2 vêm em primeiro e segundo lugar, respectivamente, em termos de liberdade e democracia, enquanto que os países dos Grupos 3 e 4 vêm em terceiro e quarto lugares. Apenas quatro países da América Latina: Chile, Costa Rica, Uruguai e Panamá são classificados no Grupo 1, enquanto que o Grupos 2 inclui 6 países: Argentina, Brasil, República Dominicana, El Salvador, México e Peru. O Grupo 3 também inclui 6 países: Bolívia, Colômbia, Equador, Nicarágua, Paraguai e Guatemala. E o Grupo 4 que indica ditaduras repressivas inclui Cuba. O caso da Venezuela fica fora do esquema pois apesar de ter eleições para presidente a Venezuela esticou o conceito de democracia para além dos limites.

O Índice de Liberdade Econômica (IEF) calculado pela The Heritage Foundation, um think-tank baseado em Washington D.C., e patrocinado pelo jornal The Wall Street, é também um útil indicador do nível de democracia de um país. Até onde um Estado permite que os seus cidadãos trabalhem, produzam, consumam e invistam da maneira como querem? Essa é uma pergunta importante não só pelo fato da liberdade econômica estar positivamente ligada a valores sociais e econômicos mas também pelo fato de representar o direito de cada indivíduo de controlar o seu trabalho e a sua propriedade. Os principais fatores utilizados para calcular o Índice de Liberdade Econômica são: o Estado de Direito, as Limitações do Governo, a Eficácia Regulatória e os Mercados Abertos. O Índice de Liberdade Econômica de 2012, recentemente publicado cobre o período que vai da segunda metade de 2010 à primeira metade de 2011. Quanto maior for o IEF mais liberdade os cidadãos têm de abrir negócios e gerir o seu patrimônio.

O Quadro 1 abaixo mostra os países e territórios da América do Sul, Central e Caribe o HDI, e os seus rankings mundiais de desenvolvimento humano (HDI), de produto interno bruto (PIB), o seu o Poder de Compra (PPP), Grupos de Liberdade & Democracia segundo o ranking da organização Freedom House e Índice de Liberdade Econômica (IEF).

Quadro 1. Ranking de HDI e PIB, Poder de Compra e Grupos de Liberdade Democracia (L&D) e Liberdade Econômica (IEF) dos países e territórios da América do Sul, Central e Caribe

Países Estado e Territórios HDI Rank (2011) PIB – Rank PPP – Poder de Compra – US$ Grupo de L & D  IEF2012 Administrador
Antiqua e Barbuda(GB) 60 66 18.200 Gov. Geral Dame Louise Lake-Tack
Argentina 45 68 17.700 Grupo 2 48,0 Pres. Cristina Fernández de Kirchner
Aruba 58 21.800
Bahamas 42 31.400 Gov. Geral Arthur Hanna
Barbados 47 56 23.700 69,0 PM Freundel Stuart
Belize 98 123 8.400 61,9 PM Dean Barrow
Bermudas (Britânicas) 4 69.900
Bolívia 108 154 4.900 Grupo 3 50,2 Pres. Evo Morales
Brasil 84 101 11.900 Grupo 2 57,9 Pres. Dilma Rousseff
Chile 44 69 17.400 Grupo 1 78,3 Pres. Sebastián Piñera
Colômbia 55 108 10.400 Grupo 3 68,0 Juan Manuel Santos
Costa Rica 69 100 12.100 Grupo 1 68,0 Pres. Laura Chinchilla
Cuba 51 111 9.900 Grupo 4 28,3 Pres. Raúl Castro
Curacao 83 15.000
Dominica 81 91 14.000 61,6 PM Roosevelt Skerrit
El Salvador 105 129 7.600 Grupo 2 68,7 Pres. Mauricio Funes
Equador 83 120 8.600 Grupo 3 48,3 Pres. Rafael Correa
Granada 67 90 14.100 PM Tilman Thomas
Guatemala 131 150 5.100 Grupo 3 60,9 Pres. Otto Pers Molina
Guiana 117 130 7.600 51,3 PM Sam Hinds
Guiana Francesa
Haiti 158 206 1.300 50,7 PM Laurent Lamothe
Honduras 121 159 4.400 58,7 Pre. Porfírio Lobo Sosa
Ilhas Cayman 16 43.800
Ilhas Falkland 8 55.400
Ilhas Virgens (Estados Unidos) 87 14.500
Ilhas Virgens (GB) 26 38.500
Jamaica 53 117 9.100 65,1 PM Portia Simpson-Miller
Martinica
Mauritius 50 81 15.100 77,0
México 57 85 14.800 Grupo 2 65,3 Pres. Felipe CalderónPres.-elect  Enrique Peña Nieto
Nicarágua 129 Grupo 3 57,9 Pres. Daniel Otega
Panamá 58 88 14.300 Grupo 1 65,2 Pres. Ricardo Martinelli
Paraguai 107 147 5.500 Grupo 4 61,8 Pres. Federico Franco
Peru 80 110 10.200 Grupo 2 68,7 PM Juan Jiménez Mayor
Porto Rico 72 16.300
República Dominicana 98 115 9.400 Grupo 2 60,2 Pres. Danilo Medina
Santa Lucia 95 12.800 71,3
Saint Vicente e Granadinas 85 103 11.600 PM Ralph Gonsalves
Suriname 104 112 9.600 52,6 Pres. Dési Bouterse
Trindade e Tobago 46 61 20.300 64,4 PM Kamla Persad-Biessessar
Uruguai 115 79 15.300 Grupo 1 69,9 Pres. José Mujica
Venezuela 73 96 12.700 Sem classif. 38,1 Hugo Chávez

Examinando o Quadro 1 acima podemos notar que os quatro países da América Latina que foram classificados no Grupo 1 de democracia e liberdade, Chile, Costa Rica, Uruguai e Panamá, também têm altos índices de liberdade econômica.

Embora na última década do século vinte o mundo assistiu o crescimento dos regimes democráticos em todo o mundo, na primeira década do século vinte e um diversos observadores constataram um retrocesso nas democracias de todo o mundo. Segundo a UNDP, 140 países do mundo afirmam ter regimes democráticos, mas apenas 82 têm uma democracia plena. A implantação de eleições é apenas o primeiro passo do processo democrático. Para se criar uma democracia plena é preciso que os poderes do Estado sejam bem equilibrados permitindo um sistema de contrapesos de poderes.

Causa dos Conflitos Políticos na América Latina

As tentativas de críticas construtivas aos processos democráticos quase sempre são malogradas pelo argumento capcioso de que a sugestão apontada é um modelo externo. Todas as civilizações e nações tomaram emprestado ideias e costumes umas das outras. A noção de cunho nacionalista de que é melhor começar um modelo político-econômico saído do nada ao invés de adaptar um já existente é tão contraproducente quanto reinventar a roda a cada novo uso encontrado para a mesma. Entretanto, os pais das jovens Repúblicas da América Latina importaram tanto o modelo americano quanto o modelo francês, introduzindo inadvertidamente, duas filosofias políticas incompatíveis.

A ambivalência das democracias nas jovens repúblicas americana e francesa, que se tornaram modelos das jovens repúblicas Latinas, só foi explicada ao público leigo no século vinte, num ensaio do filósofo britânico Bertrand Russell publicado em 1945, lamentando os dois campos dos reformadores: o dos seguidores de Jean Jacques Rousseau (1712-78) e o dos seguidores de John Locke (1632-1704). “No presente o maior seguidor de Rousseau é Hitler enquanto que Roosevelt e Churchill seguiam Locke” escreveu Russell. Nesse ensaio Russell define Rousseau como “o inventor da filosofia política das ditaduras pseudo-democráticas” e mostra a incompatibilidade entre a filosofia de Rousseau que inspirou a Revolução Francesa, e a filosofia de Locke, que inspirou a declaração da independência e a constituição americana. Russell acreditava na importância da filosofia para o público leigo, principalmente sobre virtudes intelectuais capazes de ajudar a resolver questões práticas como manter a objetividade mesmo quando confrontado com os apelos emocionais. “Se a população leiga fosse mais esclarecida essa ambivalência não teria levado tanto tempo para ser reconhecida”, ele completou.

Outro filósofo que também chegou à mesma conclusão foi Isaiah Berlin (1907-97). Numa palestra proferida em 1952, Freedom and its Betrayal: Jean Jaques Rousseau (A Liberdade e sua Traição: Jean Jaques Rousseau), Berlin sublinhou as diferenças fundamentais  entre as visões de democracia de Locke e Rousseau. Segundo Berlin a primeira diferença entre Locke e Rousseau é que Locke via a democracia como um meio para a liberdade enquanto que para Rousseau a democracia era um fim.  A segunda diferença tem a ver com o objetivo maior da democracia: para Locke era a liberdade, e para Rousseau, a igualdade. Essas duas diferenças mostram que o seu modelo de democracia de Rousseau era bem menos tolerante do que o modelo de Locke. Conforme explicou Berlin, Rousseau não admitia que dois indivíduos esclarecidos pudessem discordar um do outro, pois “se eu sou racional e iluminado e você discorda de mim, você é simplesmente irracional”.

Rousseau pode até ser reconhecido como um bom filósofo da educação mas como filósofo político ele deixou muito a desejar. O seu modelo de sociedade colocando os desígnios da maioria sempre em primeiro lugar permite que as liberdades civis sejam ignoradas. Locke foi o grande filósofo político do seu tempo, a quem Voltaire se referia como ‘Le Sage’ ou ‘O Sábio’. Foi o criador da tradição liberal, da sociedade respeitante dos direitos naturais dos indivíduos, e a Declaração de Independência dos Estados Unidos baseou-se largamente na sua obra.

Uma comparação entre a França e os Estados Unidos no período pós-revolucionário serve como indicação do conflito existente entre as filosofias políticas de Rousseau e Locke.  Na França pós-revolucionária certas ideias de Rousseau foram tomadas ao pé da letra o que levou ao Reino do Terror onde milhares foram presos e guilhotinados simplesmente por discordar da opinião da maioria. Logo após a independência dos Estados Unidos, havia uma profunda discórdia entre os Federalistas e os Anti-Federalistas, os primeiros sendo a favor e os segundos contra a formação de um governo central forte. Entretanto, as diferenças de opinião foram debatidas pela imprensa e ninguém foi condenado por ter uma opinião contrária à da maioria.

O pensador e historiador francês Alexis-Charles-Henri de Tocqueville (1805-59) visitou os Estados Unidos e a Inglaterra para conhecer melhor os seus regimes políticos. Tocqueville foi mandado para os Estados Unidos em 1931, juntamente com Gustave de Beaumont, a fim de estudar o sistema prisional norte-americano, mas lá chegando eles resolveu viajar pelo país a fim de examinar como a democracia norte-americana funcionava. Tocqueville publicou as suas impressões no livro De la démocrarie em Amérique (Sobre a Democracia na América), em dois volumes publicados em 1835 e 1840, onde fez um apanhado histórico dos eventos que levaram à democracia. Ao comparar os modelos das jovens democracias da França e dos Estados Unidos, Tocqueville reconheceu que este último era o que apresentava a maior igualdade, mesmo dando primazia a liberdade.

O Que Pensavam os Libertadores

A história mostra que os libertadores da América Hispânica assim como José Bonifácio de Andrada e Silva, o patrono da independência do Brasil, tiveram uma esmerada educação e que eles haviam tirado valiosas lições das novas Repúblicas da França e dos Estados Unidos. Sabemos que José Bonifácio assim como Sebastián Francisco de Miranda y Rodriguez, o herói precursor da independência da América Hispânica falavam o inglês e o francês e conheciam bem os dois sistemas da França e dos Estados Unidos. Entretanto, é possível que os libertadores propriamente ditos da América Hispânica não tenham tido uma visão suficiente para detectar os desacertos do modelo de democracia direta implantado na França, como o regime do terror dos primeiros anos da República e o totalitarismo de Napoleão Bonaparte. Há duas evidências que suportam isso. Em primeiro lugar é sabido que Simon Bolívar e outros libertadores tinham uma enorme admiração por Napoleão Bonaparte. Em segundo lugar, tanto os hispano-americanos quanto os brasileiros fizeram planos para libertar Bonaparte quando este se encontrava preso na ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, e chegaram a cogitar oferecer-lhe o governo das províncias independentes.

Conclusão

Talvez o maior problema das democracias Latino-Americanas seja a deficiência educacional. Por exemplo, a noção errada de que a maioria eleitoral justifica arbitrariedades por parte do incumbente eleito. Muitos votam por indicações de terceiros ou por percepções, sem refletir sobre as consequências da sua escolha. Chefes de estado são eleitos e mantidos no poder mais pela emoção do que pela razão. Talvez a maior parte dos eleitores Latino-Americanos não saibam que a chamada ‘democracia direta’ não passa de uma tirania da maioria. Os autores do Relatório de Desenvolvimento Humano (HDI) comissionado pela UNDP apontaram que a evolução das democracias Latino-Americanos até o estado de democracia plena requer uma segunda evolução pessoal onde cada eleitor se transforme num cidadão consciente.


 Notas

Sobre o indicador de liberdade e democracia da organização Freedom House:

http://copenhagenconsensus.com/Files/Filer/CC%20LAC/CCLAC%20SP/Democracy_Jones_SP_Final.pdf

Sobre o indicador de liberdade econômica da The Heritage House:

http://www.heritage.org/index/explore

UNDP (2004) La Democracia em América Latina.UNDP, New York. 246 p.


Jo (Joaquina) Pires-O’Brien é editora de PortVitoria, revista da cultura ibérica no mundo.

Beccles, 21 de novembro de 2012