Ricas conversações silenciosas

Joaquina Pires-O’Brien

Resenha do livro Provocations (Provocações) de Camille Paglia. Pantheon Books, © 2018, 712pp.

Ainda me lembro da primeira vez que encontrei o nome de Camille Paglia, antropóloga, historiadora, e mulher de letras ítalo-americana. Aconteceu no Brasil em 1992, quando um artigo dela, provavelmente uma de suas colunas sindicalizadas, foi publicado numa revista semanal dentro de uma matéria sobre os problemas da celebração, no Brasil, dos 500 anos da épica viagem de descobrimento de Colombo, devido ao ativismo de oposição. Paglia foi a única intelectual pública que se atreveu a criticar o ativismo gêmeo nos Estados Unidos, o que explica por que seu artigo foi usado no Brasil. Depois disso, comecei a prestar atenção ao nome dela sempre que aparecesse na mídia, e logo descobri que Paglia era um nome familiar no mundo anglófono, e, mais recentemente, que ela tem muitos admiradores no Brasil.

Paglia esteve no centro das guerras culturais nas faculdades e universidades americanas, no lado que representa princípios academicistas autênticos e tolerância a ideias. O seu novo livro Provocations (Provocações; 2018) oferece uma coletânea de ensaios e breves entrevistas, antecedidos por um prefácio de contraindicações e indicações. A maior parte dos ensaios abrange duas décadas e meia desde a publicação de Vamps & Tramps (Vampiros & Vagabundos), em 1994, incluindo ensaios sobre os seus livros anteriores e entrevistas passadas. De acordo com Paglia, desde a época em que estudava, ela queria desenvolver um estilo de escrita ‘interpretativo’, capaz de integrar a cultura alta e a popular, e é assim que ela descreve o seu estilo em Provocations. Um componente crucial do estilo interpretativo é a biologia da natureza humana, uma ideia banida pela maior parte dos acadêmicos da área de humanidades.

Em Provocations, os ensaios e entrevistas estão organizados em oito categorias: cultura popular; filme; sexo, gênero, mulher; literatura; arte; educação; política; e religião. As oito categorias necessárias para organizar esses ensaios são reveladoras do conhecimento enciclopédico de Paglia. No entanto, a sua maneira de pensar é melhor revelada pelas linhas de ideias que ela entremeia em cada categoria. São coisas como arte, cronograma histórico, Shakespeare, pós-estruturalismo e pós-modernismo, natureza, biologia e liberdade de expressão.

Os ensaios sobre ‘cultura popular’ incluem tópicos como Hollywood, letras de músicas, Rihanna, Prince, David Bowie e o seu alter ego Ziggy Stardust, punk rock, músicas populares favoritas, Gianni Versace e o jeito italiano de encarar a morte. Os ensaios sobre a categoria ‘filme’ falam sobre Alfred Hitchcock e suas personagens femininas, ‘o declínio do cinema europeu de arte’, ‘o declínio da crítica cinematográfica’, ‘música cinematográfica’ e ‘Homer no cinema’. A categoria ‘sexo, gênero e mulher’ começa com o ensaio ‘Sex Quest in Tom of Finland’ (A busca de sexo de Tom da Finlândia), a história de um artista homoerótico finlandês (nome real Touko Laaksonen) que foi transformado em filme. Os ensaios sobre a categoria ‘literatura’ começam com um puxão de orelha aos editores que enviam manuscritos não solicitados acompanhados de uma solicitação de ‘blurps’, sinopses de livros usados para fins promocionais; os restantes estão melhor enquadrados no tema literatura. Isso inclui ensaios sobre dramaturgos como Shakespeare, Tennessee Wiliams, Norman Mailler e sobre por que ela levou cinco anos para selecionar os melhores poemas de todos os tempos para seu livro Break, Blow, Burn (Quebre, sopre, queime). Os ensaios sobre a categoria ‘arte’ cobrem Andy Warhol, a Mona Lisa e o poder das imagens. Os ensaios sobre a categoria ‘educação’ abrangem uma variedade de temas associados às guerras culturais acima mencionadas nas faculdades e universidades americanas, incluindo os intrusivos regulamentos federais que visam impor o que é politicamente correto dentro do campus. A categoria ‘política’ começa com uma entrevista para a revista Salon sobre a invasão americana no Iraque, e em seguida, ela analisa figuras políticas como Bill Clinton, Sarah Palin e Donald Trump. A última categoria é ‘religião’, e inclui ensaios sobre a Bíblia, ‘that old-time religion’ (aquela religião dos velhos tempos), os cultos e a consciência cósmica nos anos sessenta na América, religião e as artes na América, e um ensaio sobre porque a religião deve fazer parte do currículo do ensino superior.

Um ensaio que achei especialmente intrigante foi sobre a filósofa russa-americana Ayn ​​Rand (1905-1982), cujo objetivo era esclarecer semelhanças e diferenças entre Rand e ela mesma, depois que alguns de seus leitores apontaram que haviam notado paralelos entre textos de Rand e dela própria. Quando Paglia finalmente decidiu ler Rand, ela ficou espantada ao encontrar passagens semelhantes às de seus próprios livros. No entanto, ela também destaca as principais diferenças entre ela e Rand. Conquanto Paglia descreve Rand como uma intelectual de altíssima seriedade, ela descreve o seu estilo como jocoso, enfatizando a própria crença de que a comédia é um sinal de uma perspectiva equilibrada da vida. Existe um paradoxo nessa afirmação no fato de que Paglia se exclui da categoria de ‘pensadores sérios’ e, ainda assim, exibe um tipo de autoconhecimento que é típico dos pensadores sérios.

O ensaio ‘Women and Law’ (Mulheres e Direito) chamou minha atenção devido à descrição da estátua da Justiça colocada em frente ao Supremo Tribunal Federal do Brasil. Como a maioria dos brasileiros, eu conheço essa estátua da Justiça. É uma mulher sentada segurando uma espada com os olhos vendados, significando a imparcialidade da lei. No entanto, eu não sabia que havia sido feita pelo escultor ítalo-brasileiro Alfredo Ceschiati (1918-1989) usando um ‘bloco áspero de granito cremoso de Petrópolis’, e desconhecia a linhagem histórica da ‘personificação alegórica da justiça’ que essa estátua representa. Paglia explica: “Ceschiati estranhamente achatou a cabeça da Justiça, como se ele estivesse fazendo uma alusão ao busto de Nefertiti, com sua coroa-peruca conceitualmente inchada, ou ao personagem mesoamericano Chack Mool, que supervisionava com olhos alertas o ritual do sacrifício de sangue, garantindo o nascer do sol”. Verdade? Eu sempre pensei que a cabeça chata da estátua da Justiça em Brasília era devido à decisão do escultor de fazer sua escultura tão alta quanto o seu bloco de granito permitisse. Mas, Paglia estava simplesmente deixando que sua imaginação vagueasse, pois ela logo volta aos fatos conhecidos, quando esclarece que a deusa da Justiça com os olhos vendados, “não era um motivo antigo, tendo aparecido pela primeira vez durante o Renascimento do Norte da Europa”. Depois disso, ela dá um passo lateral para questionar se o sexo (incluindo a inclinação sexual), ou qualquer outro descritor básico de grupo de pessoas, deve ser visível ou invisível à lei. As mulheres obtiveram ganhos na lei apenas de maneira fragmentada, e durante uma longa saga que começou na Suméria, sob o Código de Hamurabi, passando pelo Egito, Judeia, Atenas, Roma, Europa Cristianizada, China e Japão. O pedido contemporâneo de concessões especiais às mulheres exigiria torná-las visíveis e isso atropelaria a ideia de imparcialidade da lei.

O ensaio ‘Erich Newmann: Theorist of the Great Mother’ (Erich Newmann: Teórico da Grande Mãe) revela onde Paglia ganhou as suas perspectivas de arte, mulheres, religião e ensino superior. Newmann (1905-1961) era membro da ‘cultura de Weimar’ e produto daquilo que Paglia descreve como sendo “a fase final do grande período da filologia clássica alemã, que foi animada por um ideal de profunda erudição”. Newmann obteve seu PhD em filosofia na Universidade de Erlangen, em Nuremberg, e depois disso começou a estudar medicina na Universidade de Berlim, embora a discriminação aos judeus introduzida pelos nazistas o impedisse de fazer a residência necessária para obter o diploma de medicina. No entanto, ele continuou as suas pesquisas, que tomaram uma nova direção depois que ele conheceu Carl Jung (1875-1961), notório pelo seu trabalho sobre arquétipos (Dicionário Houaiss: “conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, evidenciável nos mitos e lendas de um povo ou no imaginário individual, esp. em sonhos, delírios, manifestações artísticas etc.”). Sob Jung, Newmann criou o arquétipo da ‘Grande Mãe’, “uma figura perigosamente dupla, benevolente e aterrorizante, como a deusa hindu Kali”. É também em Newmann que Paglia aprendeu a apreciar coisas como a alquimia e o I Ching. Na página 439 deste ensaio, ela escreve que “A crítica cultural autêntica requer saturação na academicidade, bem como um poder de uma imaginação congenial”. O apreço de Paglia por Neumann se deve a duas coisas: a qualidade de sua erudição o fato dessa representar o último período autêntico de aprendizado no ensino superior, antes que tudo fosse estragado pelo pós-estruturalismo.

 Foi na categoria ‘educação’ que encontrei os ensaios que mais gostei. Os ensaios de Paglia sobre educação abrangem os vários problemas das faculdades e universidades que desencadearam as guerras culturais da década de 1980, desde sua missão tradicional de proteger o livre fluxo de ideias até as circunstâncias que os levaram a ser inundados por intrusivos regulamentos federais que visavam impor ações consideradas politicamente corretas. No ensaio ‘Free speech and the modern campus’ (Liberdade de expressão e o campus moderno), Paglia se lembra de seus professores da valha guarda da Escola de Pós-Graduação de Yale, no final dos anos 60, como os últimos estudiosos verdadeiros. Eis como ela descreve como era antes e como é agora:

“Eles acreditavam ter uma obrigação moral de buscar a verdade e expressá-la com a maior precisão possível. Lembro-me de ter sido dito naquela época que a carreira de um estudioso poderia ser arruinada se fosse falsificada uma nota de rodapé. Um resultado trágico da era da política de identidade nas humanidades foi o colapso de rigorosos padrões acadêmicos, bem como o fim do alto valor dado uma vez à erudição, que não existe mais como um atributo desejável ou até possível nas pesquisas de emprego. nova faculdade”.

Nesse mesmo ensaio Paglia afirma que foi durante os cinco anos em que ela pesquisou o seu livro Glittering Images: A journey through art from Egypt to Star Wars (Imagens brilhantes: Uma viagem pela arte do Egito até Guerra nas Estrelas; 2012) quando notou o acentuado declínio na qualidade da academicidade das humanidades. Ela conduziu um pequeno experimento para detectar quando esse declínio começou. Esse experimento envolveu a seleção de 29 imagens dentro de um período de 3.000 anos, começando no Egito antigo e terminando no presente, e a compilação da literatura erudita acerca de cada imagem. Ela descobriu que a grande queda na qualidade aconteceu precisamente na década de 1980, justamente quando o pós-estruturalismo e o pós-modernismo invadiram as faculdades e universidades.

 Segundo Paglia, o que fez com que a erudição das humanidades diminuísse foi o ‘politicamente correto’, pois atrofiou a percepção do passado e reduziu a história a uma ladainha de queixas inflamatórias. Ela também aponta que esse problema se agravou quando as faculdades e as universidades decidiram adotar um modelo errado de multiculturalismo, que passou a colocar a culpa de todas as desigualdades sociais existentes no colonialismo ocidental. Muitos pensadores conservadores atuais não gostam do multiculturalismo, mas Paglia acredita que existe ‘um tipo certo de multiculturalismo’ que incorpora a civilização ocidental ao lado dos outras civilizações. Ela é a favor de uma reforma no ensino superior que estimule o retorno de princípios acadêmicos autênticos. Para ela, a introdução da cultura popular nas universidades não deve ocorrer às custas do passado. As faculdades e as universidades devem ter uma atmosfera de tolerância e, para que isso aconteça, o espectro da opinião ideológica permitida deve ser ampliado, em vez de estreitado. A melhor maneira de faculdades e universidades se tornarem um local de aprendizado é permitindo a liberdade de expressão e o livre fluxo de ideias; os seus departamentos não devem se tornar feudos; nenhum grupo deve ter o monopólio da verdade; e os alunos devem ser incentivados a ganhar resiliência e a aceitar a responsabilidade pessoal.

A última categoria de ensaios é sobre religião. Paglia admite ser não apenas uma ateísta mas também a sua e parcialidade à inclinação mística dos anos 60, o que explica o seu interesse em astrologia, quiromancia, PES (percepção extra sensorial) e o I Ching. O seu ensaio ‘Cultos e consciência cósmica’ é o mais longo deste livro, com 48 páginas. Nele, ela fala sobre cultos antigos e os modernos e traça a ascensão do movimento Nova Era durante as décadas de 1980 e 1990, até os anseios espirituais de sua geração. No ensaio ‘Resolved: Religion belongs in the curriculum’ (Resolvido: a religião pertence ao currículo), o penúltimo desse livro, ela argumenta a importância do entendimento das religiões para o entendimento da civilização. Ela acredita que “todo aluno deve se graduar com uma familiaridade básica com a história, textos sagrados, códigos, rituais e santuários das principais religiões do mundo – hinduísmo, budismo, judaico-cristianismo e islã”. Ela lembra o tom religioso de seu livro de 1991, Sexual Personae (A persona sexual). Aqui está a sua justificativa para isso:

 “O judaico-cristianismo nunca derrotou o paganismo, que tendo ido para a clandestinidade durante a Idade Média, entrou em erupção em três momentos principais: o renascimento, o romantismo e a cultura popular moderna, conforme sinalizado pelo panteão de estrelas carismáticas inventadas pela era dos estúdios de Hollywood e pelo rock clássico”.

Se as universidades tivessem que escolher entre o ensino da religião e o ensino do culto a Foucault – o pós-modernismo, elas estariam muito melhor com a religião. Eis como Paglia completa seu argumento:

“A veneração a Jeová traz com ela uma vasta varredura histórica e uma grande obra literária – a Bíblia. A veneração de Foucault (que nunca admitiu o quanto tomou emprestado de outros – de Emile Durkheim a Erwin Goffman) aprisiona a mente em fórmulas simplistas e cínicas sobre a realidade social, aplicáveis ​​apenas aos últimos dois séculos e meio do pós Iuminismo. O nível mais alto de intelecto, a análise conceitual e a argumentação rigorosa no corpo colecionado da antiga disputa talmúdica e da teologia cristã medieval excede em muito qualquer coisa do pouco sincero e jocoso Foucault”.

O pós-modernismo, incluindo o pós-estruturalismo firmado na crítica literária,  é um dos vários fios de ideias que entrelaçam as oito categorias deste livro. Paglia emprega os dois termos como sinônimos. Em seu ensaio ‘Scholars talk writing’ (Estudiosos conversam sobre a escrita), ela descreve a universidade Yale que ela conheceu durante o período em que fez a sua pós-graduação, de 1968 a 1972. Era uma época em que “o pós-estruturalismo francês estava inundando Yale”. É assim que ela termina o mesmo ensaio: “Passei 25 anos denunciando a prosa inchada e pretensiosa gerada pelo pós-estruturalismo. Não é preciso dizer mais! Deixe que os porcos rolem em sua própria mixórdia”. No ensaio ‘Free speech and the modern campus’ (A liberdade de expressão e o campus moderno), ela descreve o simultâneo surgimento da desconstrução e do pós-estruturalismo:

“A tendência desconstrucionista começou quando J. Hillis Miller mudou-se da Universidade Johns Hopkins para Yale e logo em seguida começou a trazer Jacques Derrida da França para visitas regulares. A moda de Derrida e Lacan foi seguida pelo culto a Michael Foucault, que continua sendo uma divindade nas ciências humanas, mas que considero um jogador de segunda categoria cujas teorias não fazem sentido em nenhum período anterior ao Iluminismo. A primeira vez que testemunhei um teórico continental discursando com professores em um evento de Yale, eu disse com exasperação um colega: ‘Eles parecem sumos sacerdotes murmurando entre si’. É absurdo que o estilo teórico elitista, com sua opacidade e jargão contorcido, tenha sido considerado de esquerda, como ainda é. O esquerdismo autêntico é populista, dotado de uma brutal franqueza de linguagem”.

O pós-estruturalismo ou o pós-modernismo foi a principal causa do enfraquecimento da academicidade nas faculdades e universidades. No seu já mencionado ensaio sobre Erich Newmann, Paglia mostra como a natureza era importante na época de Newmann e como as coisas mudaram.

“A exclusão da natureza dos estudos acadêmicos de gênero foi desastrosa. Sexo e gênero não podem ser entendidos sem alguma referência, de alguma maneira qualificada, à biologia, hormônios e instinto animal. Apagar a natureza do currículo das ciências humanas não apenas inibe a apreciação dos alunos de uma enorme quantidade de grandes poesias e pinturas inspiradas na natureza, mas também os torna incapazes de processar as notícias diárias em nosso mundo incerto de tsunamis e furacões devastadores”.

Quando comecei a ler o livro Provocations de Camille Paglia, logo entendi que ela usou a palavra ‘provocações’ no sentido de incitar a reflexão. Embora incitar reflexão não seja o mesmo que incitar raiva, a primeira coisa pode levar à segunda. Paglia fez alguns inimigos no campus, que gostariam de vê-la afastada. A história se repete quando suas lições passadas são esquecidas. Durante o julgamento de Sócrates, em 399 AEC, o filósofo disse ao povo ateniense que, embora o vissem como uma mosca incômoda, ele era uma mosca dada a eles por Deus, e uma que será difícil de substituir. Paglia é a mosca incômoda do nosso tempo, e ela também será difícil de substituir.

Jo Pires-O’Brien é uma brasileira residente no Reino Unido, e, editora da revista PortVitoria, dedicada a falantes de português e espanhol.