Jordan B. Peterson. Como um Estado totalitário é realmente formado

Jo Pires-O’Brien

As pessoas costumam ter ideias erradas acerca de como os Estados totalitários são formados, afirmou o psicólogo e intelectual público canadense Jordan Peterson numa palestra divulgada na YouTube. Segundo Peterson, os dois erros mais comuns são imaginar que o Estado totalitário consiste de um tirano maléfico e indivíduos oprimidos, e, que nele as catástrofes cascateiam de cima para baixo. Ele cita dois casos que provam o contrário disso, mostrados pelos autores Alexandre Solzhenitsyn e Christopher Browning.

Solzhenitsyn escreveu O arquipélago gulag onde registrou a realidade dos ‘gulags’ – plural do acrônimo do sistema de prisões da União Soviética, que eram verdadeiros campos de trabalho forçado, onde ele próprio esteve preso durante muitos anos em decorrência do conteúdo de uma carta particular interceptada.  Solzhenitsyn conta que durante o período que passou detido no gulag ele aproveitou para refletir sobre o que ele próprio havia feito que podia ser considerado conivente com o sistema, e que outras faltas teria cometido. Ele se lembrou que quando jovem ele havia apoiado sem questionar o Partido Comunista soviético, e reconheceu as coisas que fez no passado que foram verdadeiras traições à sua própria integridade moral.  A absoluta indignação de Solzhenitsyn salta das centenas de páginas de O arquipélago gulag, um livro terrível e enérgico, escrito com a esmagadora força moral da verdade sem verniz. O livro descreve os cruéis administradores dos gulags, que eram os próprios presos, mas não os políticos, e sim os que haviam cometido crimes de verdade.  Joseph Stalin não era o único tirano na União Soviética pois lá havia tirania em todos os níveis. Embora tivesse sido banido, por razões óbvias, o livro foi contrabandeado para o Ocidente nos anos 70 e acabou sendo traduzido para diversas línguas. Com esse livro Solzhenitsyn demoliu por completo a credibilidade intelectual do comunismo, como ideologia ou sociedade.

Browning escreveu o livro Holocaust, um estudo psicológico de 101 policiais nazistas alemães enviados para a Polônia em 1942 para aterrorizar os judeus como parte da missão da ‘solução final’ nazista.  Os psicólogos queriam entender como é que esses policiais, que eram pessoas ordinárias uma vez que não tinham sido doutrinados pela organização ‘Hitler Youth’, mas mesmo assim acabaram se tornando perpetradores do Holocausto.  O livro de Browning dá os pormenores da transformação psicológica dos policiais envolvidos. Tudo começa com um dos chefes explicando aos seus subordinados que eles terão que fazer coisas ruins, mas que, os que não quiserem fazer esse tipo de coisa, podiam voltar para casa. No entanto, o fato da força policial ser uma organização quase militar e fechada não era conducente à dissensão. O raciocínio mais natural nessas circunstâncias era: “Não vou deixar que meus colegas façam todo o trabalho sujo, pois isso seria covardia”.  Havia um elemento ético que mantinha o indivíduo lá, no fato de que a opção de ir para casa não seria percebida como um ato heroico. Assim sendo, os indivíduos se envolveram no esquema com facilidade. Entretanto, os requisitos para a permanência deles na organização policial continuaram aumentando. Cada instância em que um policial aceitava fazer uma coisa horrível, aumentava a probabilidade de ele também fazer o próximo ato ainda mais sórdido. Isso não significa que os policiais alemães não tivessem sofrido com a situação onde se encontravam, quer mental, quer  fisicamente, mas apesar disso eles não desistiram da missão. A conclusão do estudo foi de que qualquer pessoa comum pode ser atraída a fazer coisas tão horríveis.

Outra tirania importante do século XX era a da a Alemanha Oriental, na qual uma em cada três pessoas era informante do governo. Isso significa que numa família de seis pessoas havia duas em quem você não podia confiar. Assim, pensar que a tirania vem de cima para baixo na estrutura política social é um engano. Uma tirania é algo que existe em todos os lugares ao mesmo tempo; e é fácil as pessoas dizerem coisas como “eu estava apenas cumprindo ordens”.

Quando as pessoas aprendem acerca das tiranias do século XX é comum imaginarem que se elas estivessem vivendo numa situação similar elas não seriam perpetradores de crueldades. Quando as pessoas assistem filmes como A Lista de Schindler e outros desse tipo, a maior parte delas imagina-se que se estivessem no lugar e no tempo seriam os heróis e não os perpetradores de crimes e maldades. A pesquisa que existe acerca das personalidades humanas mostra que não seria assim. Uma boa parte dos culpados pelas grandes tiranias do século XX é composta pelos indivíduos ordinários.

Embora a palestra de Peterson tenha se concentrado nos Estados totalitários, ele reconhece que mesmo as democracias costumam perder o rumo e aprovar legislações de caráter antidemocrático e totalitarista, conforme aconteceu recentemente quando os parlamentares do Canadá aprovaram uma emenda à Lei de Direitos Humanos que obriga as pessoas a empregar os novos pronomes pessoais de gênero (PGPs) promovidos pelo ativismo LGBT, que insiste que os pronomes pessoais ordinários,  he (ele), she (ela), him (dele) e her (dela), são discriminatórios pelo fato de serem binários.  Dentre os novos pronomes pessoais não binários podemos citar: e/ey, em, eir, eirs, eirself, zie, \im, zir, zirs, zirself, etc.  Para Peterson, a nova lei infringe o direito pessoal de expressão e é totalmente desnecessária. Na ausência dessa legislação ele não tinha objeções a empregar os novos pronomes, caso achasse conveniente, mas agora que a lei obriga ele já não se sente disposto a usá-los.

Ainda mais vulneráveis que as democracias estáveis como o Canadá e os Estados Unidos são as democracias ainda em formação, que podem ser descritas pela fictícia Belíndia criada pelo economista e escritor brasileiro Edmar Bacha no ensaio “O economista e o rei da Belíngia: uma fábula para tecnocratas”.  A fictícia Belíndia de Bacha é uma metáfora para o Brasil, país formado por uma pequena porção rica, cercada pela enormidade de pobreza; é uma democracia, uma vez que nela não há nenhum grande tirano. Entretanto, possui centenas de pequenos tiranos, nos funcionários do governo, que fazem seus desmandos com impunidade.  Os funcionários corruptos eram honestos quando jovens, mas eventualmente se corromperam, passando por um processo semelhante àquele descrito no livro Holocaust de Browning, acima mencionado. Tudo começa com um pequeno deslize, como fazer vista grossa para algo errado. E assim como Browning desreveu a transformação de honestos funcionários alemães em assassinos, no regime da Belíndia, cada deslize cometido por um funcionário aumenta a probabilidade deste cometer o próximo.

Peterson conclui o seu argumento sobre como os estados totalitários são formados mostrando que a tirania é como uma erva daninha que pode florescer em todo lugar, desde as famílias e as organizações até os mais baixos escalões do governo. Todos os cidadãos são responsáveis pela sociedade.

O Marquês de Pombal

Joaquina Pires-O’Brien

O Marquês de Pombal era um personagem proscrito na história que aprendi no curso médio no Brasil. Eu atribuo isso à inclinação política de esquerda que predominava na época; tal inclinação era um ponto cego que impedia uma visão completa do personagem, com seus vícios e virtudes. Os professores de história argumentam que o ‘iluminismo’[1] de Pombal, apesar de seu longo alcance, foi primariamente um mecanismo para aumentar a autocracia às custas da liberdade individual e, especialmente, uma aparelhagem para esmagar a oposição, suprimir críticas, e ampliar a explotação econômica colonial, bem como intensificar a censura da imprensa e  consolidar controle e ganhos pessoais. Apenas em 1995 o público interessado teve acesso a uma visão bem mais abrangente do marquês, através do livro de Kenneth Maxwell, Pombal: Paradoxo do Iluminismo.

Uma importante característica de Portugal do século XVIII era a sua rígida estrutura de classes sociais. E conforme escreveu Manuel Fernando Vizela Marques Cardoso, “A ordem social, mantida por costumes antigos, estava claramente definida e quase ninguém punha em causa este sistema que a própria religião e o ensino toleravam.” Assim, não é difícil entender que Pombal incomodou muita gente ao romper com essa tradição. A nobreza de Portugal o menosprezava pelo fato dele não pertencer à mesma. E as pessoas ordinárias se referiam a ele como ‘estrangeirado`, devido às suas ideias avançadas aprendidas durante suas residências em Londres e em Viena. Foi um golpe de sorte para Portugal ter um monarca capaz de reconhecer a competência de Pombal, e um golpe de sorte duplo para o próprio Pombal,  ter sobrevivido e ter tido a oportunidade de demonstrar seu valor. Para uma época definida pelas governanças absolutistas isso não é a coisa de se jogar fora, principalmente se levarmos em conta a quantidade de mentes brilhantes que são desprezadas pelas viciadas máquinas governamentais dos países democráticos de hoje em dia. 

Em 1o de novembro de 1755, quando Lisboa foi atingida por um violento terremoto com magnitude estimada de 9 na escala Richter, tendo sido sentido até em Hamburgo e nas ilhas dos Açores. O terremoto foi seguido de um tsunami que também destruiu os portos do golfo de Cádiz, na Espanha, com ondas de 5 a 15 metros de altura. O abalo sísmico e o tsunami foram seguidos por diversos incêndios, resultando na destruição da maior parte da cidade de Lisboa.

Na época em que Lisboa foi acometida pelo terremoto, a população de Portugal era ignorante acerca das leis físicas acerca da gravidade e do movimento dos corpos celestes, e o seu entendimento acerca do universo era entrelaçado às crenças na revelação divina bem como a especulações sem fundamento. Entretanto, na França, Inglaterra, e Alemanha, onde as ideias do Iluminismo já estavam espalhadas na população leiga, esta tinha ao menos uma ideia vaga de que o terremoto de Lisboa tinha sido um fenômeno normal da natureza. Foi a primeira vez na história da Europa em que um cataclismo de grande porte foi assim entendido. Quão diferente foi, por exemplo, do incêndio de Londres de 1625 e da Grande Peste de 1665 a 1666, ambos caracterizados por buscas irracionais de causas e responsáveis.

Logo após o terremoto de Lisboa, o filósofo francês Voltaire (François-Marie Arouet; 1694 – 1778), se concentrou em explicar as suas causas naturais e dissipar a teodiceia reinante de que havia sido uma punição de Deus. Por tudo isso, o terremoto de Lisboa de 1755 tornou-se o marco do limite inicial do Iluminismo, apesar de que este ainda não havia chegado a Portugal. Ali predominava a teodiceia. Em meio às centenas de corpos e aos escombros da cidade, os padres chamavam a população para rezar e pregavam que o terremoto havia sido um castigo divino. Pombal foi o quem trouxe a luz à população paralisada de medo logo após o terremoto de 1755, com sua atitude resoluta e sua competente liderança.  Uma frase dele que se tornou famosa é: “O que fazer agora? Enterramos os mortos e curamos os vivos!”.O presente ensaio visa mostrar que o personagem histórico Pombal tem outros ângulos além do de déspota esclarecido. E, é bom lembrar que poderia ter sido muito pior, se ao invés de esclarecido ele fosse estúpido e inculto.

Súmula biográfica

D. Sebastião José de Carvalho e Melo, 1o Marquês de Pombal, 1o  Conde de Oeiras (13 maio de 1699 – 8 Maio de 1782) foi um diplomata e estadista português. Durante o reinado de Dom José I de Portugal, de 1750 a 1777, ele ocupou o posto de Secretário de Estado do Reino de Portugal e do Algarve, cargo equivalente a um Primeiro Ministro contemporâneo, quando foi o chefe do governo português de fato. Melo recebeu seu primeiro título de nobreza aos 60 anos de idade, quando, em 1759, D. José I nomeou-o Conde de Oeiras. O rei lhe concedeu o título de Marquês de Pombal onze anos depois, em 1770, quando tinha 71 anos de idade.

Pombal já tinha 78 anos de idade quando deixou o cargo de Secretário de Estado, após o falecimento do rei D. José I, uma idade avançada até para os padrões contemporâneos. Em circunstâncias normais, um servidor público comum já teria se aposentado há pelo menos duas décadas. Mas Pombal era um homem de elevada diligência, o que sugere que teria optado por continuar contribuindo para a reconstrução de Lisboa e a modernização de Portugal. Não foi por acaso que surgiu o termo ‘pombalino’ para descrever o estilo de arquitetura que marcou a Lisboa de após o grande terremoto, bem como a gestão de Pombal. E o que aconteceu a Pombal depois da morte de  D. José I?

Por ter perseguido os jesuítas, Pombal tornou-se um desafeto D. Maria I[2], um católica devota e sob o domínio dos primeiros. Diz-se que até mesmo a menção do nome de Pombal induzia ataques de raiva na rainha. Não contente em retirar todos os cargos de Pombal, ela também o acusou de corrupção, e num julgamento fantoche, sem o devido direito de defesa,  Pombal foi condenado. Em seguida, a rainha também emitiu uma das primeiras ordens de restrição da história, ordenando que o marquês não estivesse a menos de 32 quilômetros de sua presença. O cumprimento do decreto real exigia que Pombal se retirasse de sua morada, na eventualidade da rainha ter que viajar para alguma localidade próxima. Finalmente, e seguindo a cartilha de Maquiavel, a rainha buscou dar mostra de sua magnanimidade, publicando um edito dizendo que perdoava ao marquês pelos seus crimes e, como ele era senil e doente, não se exigiria que ele saísse do país.  É claro que essa concessão da rainha não serviu de conforto Pombal, cujo anseio maior era limpar o seu nome. Como o belo palácio que Pombal havia construído em Oeiras ficava a menos de 32 quilômetros de Lisboa, ele não pode permanecer lá depois de ter se retirado da corte. Pombal foi morar na vila de Pombal, em Leiria, numa casa de campo de propriedade de seu tio-avô, onde morreu placidamente em 1782, aos 82 anos.

Apesar de Pombal ter sido descartado pela rainha, os seus feitos passados selaram a sua reputação. Depois que os estudiosos de outros países reconheceram o valor de Pombal no avanço da secularização, colocando-o no centro do Iluminismo europeu. Aos poucos, a contribuição de Pombal voltou a ser reconhecida em Portugal. Em 1934 Pombal foi homenageado com com uma estátua em bronze dele ao lado de um leão, em cima de um pedestal de pedra trabalhada de cerca de 40 metros de altura, numa importante praça de Lisboa que também leva o seu nome.

Os primeiros anos

Sebastião José de Carvalho e Melo nasceu Casconho, próximo a Soure, na região de Coimbra, na primavera de 1699. Era filho de  Manuel de Carvalho e Ataíde, um proprietário de terras na região de Leiria, e de Teresa Luísa de Mendonça e Melo. Quando jovem ele estudou na Universidade de Coimbra e serviu ao exército por um curto período de tempo. Em seguida, ele se mudou para Lisboa e evadiu-se com Teresa de Mendonça e Almada (1689–1737), viúva sem filhos de seu primo António de Mendonça Furtado, falecido em 1718, a qual era onze anos mais velha do que ele. Apesar da família da noiva ter organizado o casamento do jovem casal, eles optaram por ir morar numa propriedade dos Melo, próxima de Pombal. O casal não teve filhos e Teresa faleceu em Lisboa, em 6 de fevereiro, aos 51 anos.

Em 1733 Pombal foi nomeado sócio da Academia Real de História Portuguesa, fundada em 1720 por D. João V, o Magnífico, e cuja moto era Restituet Omnia, que significa ‘restaurar todas as coisas’. Em 1740, um ano depois de ter ido para Londres como embaixador, ele foi eleito membro da Royal Society,[3] onde possivelmente teve oportunidades de ouvir os iluminados época, inclusive o francês Voltaire, eleito membro em 1741.

Carreira política

Sebastião José de Carvalho e Melo ainda não tinha nenhum título de nobreza quando, em 1938,  aos  39 anos de idade, recebeu o seu primeiro cargo público importante, durante o reinado de D. João V. Isso ocorreu quando o então primeiro ministro (secretário de Estado), o cardeal D. João da Mota, nomeou-o embaixador (plenipotenciário da corte) junto à corte da Grã Bretanha. Em 1745, Melo serviu também como embaixador de Portugal na Áustria[4].

A participação de Melo na corte de Lisboa lhe deu a oportunidade de conhecer a culta e poliglota rainha consorte, a arquiduquesa Maria Anne Josepha, da Áustria (1683–1754)[5], a  qual simpatizou de imediato com Melo. Quando este ficou viúvo de Teresa, sua primeira esposa, a rainha arranjou o casamento dele com Eleonora Ernestina von Daun, filha do Marechal de campo austríaco Leopold Josef, conde von Daun. Entretanto, o rei D. João V, não aprovou o casamento, e o chamou de volta em 1749. O casal teve sete filhos, sendo que o segundo, D. Henrique José Maria Adão Crisóstomo de Carvalho e Melo (1748-1812), passou a ser o 2º Marquês de Pombal, eventualmente imigrou para o Brasil. Com a morte deste, sem ter deixado descendentes legítimos, o título passou ao seu irmão D. José Francisco de Carvalho Melo e Daun.

A carreira pública de Melo é restaurada em 1950, quando D. João V morre e é sucedido pelo seu filho D. José, que era afeiçoado a ele. Melo passa a trabalhar diretamente com D. José I, e logo passa a ser o braço  direito do monarca. A experiência pregressa de Melo em Londres e em Viena foi crucial para o seu novo cargo de Secretário de Estado de Negócios Interiores, cargo equivalente a primeiro ministro. Melo era um anglófilo que procurou entender as causas do sucesso econômico inglês, e  buscou implementar políticas econômicas semelhantes em Portugal. Pombal aboliu o exército e a marinha, aboliu os Auto de fé e os estatutos civis de ‘Limpeza de Sangue’ e suas discriminações contra os novos cristãos (judeus que haviam se convertido ao cristianismo a fim de escapar da Inquisição portuguesa, e seus descendentes).

As reformas pombalinas

As reformas pombalinas consistiram de uma serie de reformas voltadas a fazer com que Portugal se tornasse uma nação autossuficiente e economicamente robusta, através da expansão do território brasileiro, do enxugamento da administração do Brasil colonial, e reformas fiscais e econômicas tanto em Portugal quanto nas colônias.

Durante a Idade do Iluminismo Portugal era considerado um país pequeno e atrasado. Em 1750 a população de Portugal era de três milhões de habitantes; cerca de 200 mil pessoas viviam nos 538 mosteiros do país. Embora a economia de Portugal antes das reformas fosse relativamente estável, esta dependia do Brasil para suporte econômico, e da Inglaterra para suporte na manufatura, através do Tratado de Mutuem de 1703. Até mesmo os produtos portugueses exportados eram intermediados por mercadores expatriados, como os exportadores ingleses de vinho do Porto e os negociantes franceses como Jácome Ratton, cujas crônicas são altamente críticas à eficácia de suas contrapartidas portuguesas.

A necessidade de expandir o setor manufatureiro em Portugal tornou-se ainda mais imperativo devido aos gastos excessivos da coroa portuguesa, o terremoto de Lisboa de 1755, as despesas com as guerras com a Espanha por territórios da América do Sul, e a exaustão das minas de outo e diamantes no Brasil.

Suas maiores reformas foram, no entanto, econômicas e financeiras, com a criação de várias empresas e ‘guildas’ para regular todas as atividades comerciais. Ele criou a empresa ‘Douro Wine’, que demarcou a região vinícola do Douro, para garantir a qualidade do vinho do Porto; essa foi a primeira tentativa na Europa de controlar a qualidade e a produção de vinho. Diz-se que Melo governou com mão pesada, impondo leis estritas a todas as classes da sociedade portuguesa, da alta nobreza à classe trabalhadora mais pobre, e através de sua ampla revisão do sistema tributário do país. Essas reformas lhe renderam inimigos nas classes altas, especialmente entre a alta nobreza, que o desprezava como um iniciante social.

Outras reformas importantes realizadas por Melo foram na educação. Em 1759 ele criou a base para escolas primárias e secundárias públicas seculares, introduziu treinamento profissional, criou centenas de novos postos de ensino, adicionou departamentos de matemática e ciências naturais à Universidade de Coimbra e introduziu novos impostos para custear por essas reformas.

O terremoto de Lisboa

Um desastre caiu sobre Portugal na manhã de 1º de novembro de 1755, quando Lisboa foi atingida por um violento terremoto com magnitude estimada de 9 na escala Richter. A cidade foi arrasada não apenas pelo terremoto mas também pelo tsunami e incêndios que se seguiram. Melo sobreviveu por um golpe de sorte e imediatamente embarcou na reconstrução da cidade, com sua famosa citação: “O que fazer agora? Enterramos os mortos e curamos os vivos!”.

Apesar da calamidade, Lisboa não sofreu epidemias e, em menos de um ano, já estava sendo reconstruída. A nova área central de Lisboa foi projetada para resistir a terremotos subsequentes. Modelos arquitetônicos foram construídos para testes, e os efeitos de um terremoto foram simulados por marchas de tropas ao redor dos modelos. Os edifícios e as principais praças do centro pombalino de Lisboa são uma das principais atrações turísticas de Lisboa: são os primeiros edifícios à prova de terremotos do mundo. Melo também deu uma contribuição importante ao estudo da sismologia, projetando um questionário que foi enviado a todas as paróquias do país.

O questionário perguntou se cães ou outros animais se comportavam estranhamente antes do terremoto, se havia uma diferença notável na elevação ou queda do nível da água nos poços e quantos edifícios haviam sido destruídos e que tipo de destruição ocorreu. As respostas recebidas permitiram aos cientistas portugueses modernos reconstruir o evento com precisão.

Campanha contra e os autos da fé e contra os jesuítas

Melo fez uma forte campanha para por fim aos autos de fé, aquelas cerimônias públicas organizadas pelo Tribunal do Santo Ofício, também conhecido como Inquisição, e que incluía uma procissão que terminava numa estrutura em cadafalso, em cima do qual os réus eram apresentados ao público. Melo sabia que não podia exterminar a Inquisição, e assim, ele se limitou a tentar influencia-la. Para tal, ele nomeou seu irmão, D. Paulo Antônio de Carvalho e Mendonça, inquisidor-mor. Ele também usou a inquisição para combater a ordem dos jesuítas, isto é, dos padres católicos pertencentes à Sociedade de Jesus, fundada por Santo Inácio de Loyola em 1540, em Paris.

Inicialmente o ingresso na Sociedade de Jesus requeria um elevado padrão educacional de seus aspirantes. Os jesuítas eram mandados para as colônias europeias na América, Ásia e África, com a missão de converter os nativos e trazê-los ao seio da cristandade. Lá eles compilaram dicionários, e ensinaram música e teatro, além de outras coisas, como fizeram o Padre Manoel da Nóbrega e o Padre José de Anchieta no Brasil. Entretanto, passados quase dois séculos, a Sociedade de Jesus entrou em decadência. Muitos padres jesuítas eram incultos e ignorantes, como aqueles que pregavam que o terremoto de Lisboa havia sido um castigo divino.

Tendo morado em Viena e Londres, esta última sendo importante centro do Iluminismo, Melo acreditava cada vez mais que a Sociedade de Jesus, cujos membros são conhecidos como ‘jesuítas’, com seu domínio da ciência e da educação, era um resistência inerente a um iluminismo independente em estilo português.

Melo conhecia bem a tradição anti-jesuita do Reino Unido, e, em Viena, fez amizade com Gerhard van Swieten, confidente da imperatriz Maria Teresa e forte adversário da influência dos jesuítas austríacos. Melo empregou a sua autoridade e seus relacionamentos para expulsar os jesuítas de Portugal, engajando-se numa campanha pública a contra os jesuítas, que foi observada de perto pelo resto da Europa. Durante o caso Távora, quando um membro dessa família tentou assassinar o rei D. José I, ele acusou a Companhia de Jesus de envolvimento. Os jesuítas foram expulsos de Portugal e seus bens confiscados pela coroa. E em 1773 os jesuítas foram expulsos de toda a Europa e suas colônias, quando os reis absolutistas europeus forçaram o Papa Clemente XIV a emitir uma bula papal  que os autorizava a suprimir a ordem em seus domínios.

 O affair Távora

A diligência de Melo logo em seguida ao terremoto de 1º de novembro de 1755 fez com que D. José I lhe atribuísse ainda mais autoridade. Segundo consta, foi aí que e Melo tornou-se numa espécie de ditador. À medida que seu poder cresceu, os seus inimigos aumentaram em número, e disputas amargas com a alta nobreza se tornaram frequentes. A maior dessas disputas amargas foi o affair Távora, iniciado em 1758, quando D. José I foi gravemente ferido em uma tentativa de assassinato, ao retornar de uma visita à sua amante, a jovem marquesa de Távora.

Melo jogou todo o seu poder contra a família Távora e também contra o duque de Aveiro, que estavam envolvidos. Melo não mostrou piedade, processando todas as pessoas envolvidas, até mulheres e crianças. Foi uma grande vitória do primeiro-ministro contra os seus inimigos da aristocracia. Após o caso Távora, o novo conde de Oeiras não conheceu oposição. Como recompensa por sua rápida determinação, D. José I tornou o seu leal ministro conde de Oeiras em 1759. Mais tarde, em 1770 foi nomeado Marquês de Pombal.

O affair Távora ainda não é um capítulo encerrado da história. Há uma tese de que os mandantes do crime não foram os Távora mas sim a rainha, D. Mariana Vitória, e que o verdadeiro alvo seria a marquesa, a amante de D. João V, que o acompanhava.

A invasão da Espanha

Em 1761, a Espanha concluiu uma aliança com a França, pela qual a Espanha entraria na Guerra dos Sete Anos, em um esforço para impedir a hegemonia britânica. Os dois países viam Portugal como o aliado mais próximo do Grã-Bretanha, devido ao Tratado de Windsor. Como parte de um plano mais amplo para isolar e derrotar a Grã-Bretanha, enviados espanhóis e franceses foram mandados a Lisboa para exigir que o rei e Pombal concordassem em cessar todo o comércio ou cooperação com a Grã-Bretanha ou enfrentar uma guerra. Embora Pombal desejasse tornar Portugal menos dependente da Grã-Bretanha, esse era um objetivo a longo prazo, e ele e o rei rejeitaram o ultimato de Bourbon.

Em 1762, a Espanha declarou guerra a Portugal e enviou tropas através da fronteira. Apesar de terem conseguido capturar Almeida, eles logo pararam. Pombal havia enviado mensagens urgentes a Londres solicitando assistência militar, mas nenhuma tropa britânica foi enviada. Em vez disso, a Grã-Bretanha enviou William, o conde de Schaumburg-Lippe e alguns de seus militares para organizar o exército português.

Após a Batalha de Valência de Alcântara, os espanhóis foram empurrados de volta à fronteira. O Tratado de Paris pedia a restauração de todo o território português em troca dos britânicos devolverem Cuba, e Almeida foi evacuado.

Nos anos após a invasão, e apesar da crucial assistência britânica, Pombal começou a se preocupar cada vez mais com o aumento do poder britânico. Apesar de ser um anglófilo, ele suspeitava que os britânicos cobiçavam o Brasil e ficou alarmado com a aparente facilidade com que haviam tirado Havana e Manila da Espanha em 1762.

Relações com o Brasil

Pombal deu atenção ao Brasil, assim como às demais colônias portuguesas.

Em 1751, criou o Tribunal de Relações do Rio de Janeiro. Juntas de justiça foram instituídas nas capitanias.

Em 1763, mudou a capital do Brasil, de Salvador para o Rio de Janeiro.

Organizou a fundação de numerosas comarcas e vilas foram fundadas. A capitania de Mato Grosso, criada por D. João V, só então foi instalada. Criou a capitania do Piauí, e resolveu a questão entre as fronteiras das capitanias de São José do Rio Grande e de Rio Grande de São Pedro.

Renomeou o Estado do Maranhão, criado em 13 de junho de 1621, como Estado do Grão-Pará  e Maranhão, que permanece como uma colônia autônoma portuguesa até 1823.

Incentivou a diversificação da agricultura, fazendo com que o Brasil passasse a plantar mais arroz, tabaco, algodão e cacau.

Tornou o português a língua oficial em todo o território do Brasil.

Declínio e morte

Efetivamente, Melo governou Portugal até a morte de D. José I em 1777, quando ele foi sucedido por sua filha, Dona Maria I, cujo marido, tornou-se Dom Pedro III, um rei consorte. D. Maria I era uma católica devota e sob a influência de padres jesuítas, em decorrência de que o Marquês de Pombal era um desafeto. Assim que subiu ao trono, ela fez o que havia prometido: retirou todos os cargos políticos de Melo.

Dona Maria I também emitiu uma das primeiras ordens de restrição da história, ordenando que o marquês não estivesse a menos de 32 quilômetros de sua presença. Se ela viajasse perto de suas propriedades, ele era obrigado a se retirar de sua casa para cumprir o decreto real. Diz-se que a menor referência em sua audição a Pombal induzia ataques de raiva na rainha. Dona Maria I era conhecida inicialmente como ‘a piedosa’, mas mais tarde ficou evidente que a sua piedade era uma exagerada manifestação de sua insanidade, e após ser interditada em 1792, entrou para a história como ‘a louca’. Logo no início do seu governo, de 1777 a 1792, ela afastou o Marquês de Pombal da corte, depois que este foi acusado de corrupção e condenado num julgamento fantoche. Entretanto, para mostrar-se como benemérita, a rainha fez publicar uma decisão dizendo que perdoava ao marquês por seus crimes e, como era senil e doente, não se exigiria que ele saísse do país.

Em Oeiras, entre Lisboa e Cascais, Pombal havia construído um belo palácio, completo com jardins franceses formais, com paredes decoradas com tradicionais azulejos portugueses e vinhedos entremeados por chafarizes e córregos artificiais. Entretanto, devido a proximidade do Palácio de Oeiras com Lisboa, após o seu banimento da corte, Pombal foi morar num solar de campo de propriedade de seu tio-avô, na vila de Pombal (Leiria), onde morreu placidamente em 1782, aos 82 anos.

Pombal foi enterrado no cemitério da igreja do convento de Santo Antônio, na vila de Pombal. Em 1856/7, o Marechal Saldanha, seu neto por via materna, trasladou para Lisboa os restos mortais do marquês, que foram depositados na ermida das Mercês, onde o Marquês de Pombal fora batizado e que pertencia à irmandade. Em 1923, os restos mortais passaram em definitivo para a Igreja da Memória, em Lisboa, onde se encontram até ao presente.

O julgamento da História

D. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, recebeu o julgamento da história em prestações. Foi déspota, líder cruel e implacável, e déspota esclarecido. Talvez a maior mancha na sua reputação foi ter permitido o julgamento rápido dos acusados do crime de tentativa de regicídio contra D. José I. Essa é uma acusação procedente pois a justiça para ser justa precisa ser isenta de influência política. Por outro lado, os crimes de lese-majesté eram considerados hediondos e acompanhados de pena de morte.

O terremoto de Lisboa de 1755 foi a primeiro grande calamidade da Europa a ser explicada ao povo pelas suas causas naturais e não pela vontade Divina e outras a causas improváveis. A atuação de Pombal foi crucial para essa mudança, e o colocou no centro do Iluminismo. Quando não era mais possível retirar de Pombal o rótulo de ‘iluminado’, ele passou a ser chamado ‘déspota esclarecido’.

Um dos mais cruéis julgamentos de Pombal, anteriormente mencionado, afirma que o ‘iluminismo’  do marquês foi primariamente um mecanismo para aumentar a autocracia às custas da liberdade individual e, especialmente, uma aparelhagem para esmagar a oposição, suprimir críticas, e ampliar a explotação econômica colonial, bem como intensificar a censura da imprensa e  consolidar controle e ganhos pessoais. Entretanto, esse julgamento é típico da miopia dos ideólogos de esquerda e sua noção de que a sociedade é formada por opressores e oprimidos.

O governo português reconheceu os feitos do Marquês de Pombal em 1934, com a construção um importante monumento histórico colocado na praça em Lisboa que também leva o seu nome, no topo da Avenida da Liberdade. Em 1978, na cidade de Pombal, foi criado o Museu Marquês de Pombal, que guarda a coleção de objetos relacionados ao marquês, colecionados pelo antiquário Manuel Gameiro. E, no município Oeiras, onde Pombal construiu seu magnífico palácio, marca com um feriado a data em que Sebastião José Carvalho e Melo foi elevado à dignidade de Conde de Oeiras, em 7 de Junho de 1759.

Diversas biografias recentes do Marquês de Pombal, aparentam oferecer julgamentos bem mais equilibradas do que os até então vigentes, como as abaixo citadas.

_ Maxwell, Kenneth. Pombal: Paradox of the Enlightenment. (Pombal: Paradoxo do Iluminismo; 1996). (Veja abaixo a resenha de Derek Beales)

_ Barata, José. A vida e a obra do Marquês de Pombal. O Homem e o Estadista. 2016. 160 p.

_ Azevedo, João Lúcio. O Marquês de Pombal e a sua época. Wentworth Press, 2019.

Em conclusão, o bom senso é muito mais chegado à objetividade do que a ideologia, que é sempre acompanhada de vieses. Na vida real, a maior parte das pessoas tem suas boas qualidades e seus defeitos, bem como os seus acertos e seus erros, e tudo deve ser levado em conta no julgamento honesto da história. O Marquês de Pombal não foi um santo mas tampouco foi o demônio como muitos o pintaram.

Figura 1. Marquês de Pombal.

Figura 2. Praça rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa, a 19 de março, dia seguinte ao decreto de ‘estado de emergência’ do Covid19. Foto de João Pedro Morais, do Observador.

Nota. Marquês de Pombal: O déspota esclarecido

Derek Beales

Resenha do livro Pombal: Paradox of the Enlightenment by Kenneth Maxwell. Cambridge University Press, 1995, 200 pp.

Por duas vezes na sua história, Portugal teve um papel de liderança na Europa. No século XV, foi pioneiro em explorações e descobertas em outros continentes, o que resultou em sua transformação num vasto império, que incluía postos avançados na Ásia, partes substanciais da África e metade da América do Sul, principalmente no atual território do Brasil. Outras potências logo seguiram o exemplo de Portugal – embora não a Áustria. O império português ainda estava em grande parte intacto, e no Brasil ainda estava em expansão, quando em 1759 Portugal tomou outra grande iniciativa, a expulsão e expropriação dos jesuítas da pátria e de suas colônias. Um por um, os outros poderes católicos, novamente com a grande exceção da Áustria, seguiram o exemplo de Portugal. Em 1773, a pressão deles sobre o papa Clemente XIV se tornou forte demais para ele resistir, e ele decretou a supressão total da ordem jesuíta. A Áustria obedeceu.

A primeira iniciativa de Portugal foi certamente uma das mais significativas da história registrada. Se o segundo não pode ser colocado na mesma classe, ainda foi um evento que surpreendeu o mundo e o mudou muito. Ninguém duvida que um homem tenha sido o principal responsável pela expulsão de Portugal dos jesuítas: o marquês de Pombal, o primeiro ministro do rei José I durante todo o seu reinado de 1750 a 1777. É a ação pela qual Pombal é mais conhecido, mas ele foi um governante excepcionalmente enérgico e implacável, que tentou transformar a maior parte dos aspectos da economia e da sociedade de seu país. O historiador Leo Gershoy o chamou de “o reformador mais espetacular e dinâmico do século” – uma reivindicação grande feita ao escrever sobre a era de Pedro, o Grande e Catarina, a Grande da Rússia, Frederick William I e Frederick, o Grande da Prússia, Maria Teresa e José II da Áustria e seu ministro, o príncipe Kaunitz.

A nova biografia de Pombal, de Kenneth Maxwell, é uma conquista notável. Em apenas 166 páginas de texto, nas quais também foram encontradas 47 ilustrações, ele explica os desenvolvimentos no Brasil e em Portugal, coloca os dois países em seus cenários mundiais, expõe a carreira do ministro, seus objetivos e ações, e depois os discute como um caso de despotismo esclarecido – tudo com evidente domínio e deleite. O livro é baseado em uma extensa pesquisa, que rendeu algumas citações esplendidamente apontadas. Se muito disso já figurou em Conflitos e conspirações: Brasil e Portugal, 1750–1808, de Maxwell, a concentração no próprio Pombal nesta biografia levou-o a considerar muitos assuntos não relevantes para o livro anterior, como a reforma educacional e a reconstrução de Lisboa, com a qual Pombal esteve profundamente envolvido. Pombal representa um imenso avanço sobre qualquer coisa publicada anteriormente em inglês sobre o assunto e, até onde eu sei, não há nada comparável a isso em qualquer idioma.

O primeiro problema sobre Pombal é o seu nome. Sebastião José de Carvalho e Melo nasceu em 1699 em uma família nobre. Em 1759 foi designado conde de Oeiras, e apenas em 1769 marquês de Pombal. A sua carreira começou…

Resenha publicada em inglês no The New York Review of Books. April 18, 1996. Tradução de JPO.

Marchis of Pombal: The Enlightened Despot

Derek Beales

Review of the book Pombal: Paradox of the Enlightenment by Kenneth Maxwell. Cambridge University Press, 1995, 200 pp.

Twice in its history Portugal has had a leading part in Europe. In the fifteenth century it pioneered explorations and discovery in other continents, ending up with a vast empire including outposts in Asia, substantial parts of Africa, and half of South America, mostly now the territory of Brazil. Other powers soon followed Portugal’s example –t hough not Austria. The Portuguese empire was still largely intact, and in Brazil was still expanding, when in 1759 Portugal took another great initiative, the expulsion and expropriation of the Jesuits from both the mother country and its colonies. One by one the other Catholic Powers, again with the major exception of Austria, followed Portugal’s example. In 1773 their pressure on Pope Clement XIV became too strong for him to resist, and he decreed the total suppression of the Jesuit order. Austria complied.

Portugal’s first initiative was surely one of the most significant in recorded history. If the second cannot be put in quite the same class, it was still an event that astounded the world and greatly changed it. No one doubts that one man was essentially responsible for Portugal’s expulsion of the Jesuits: the Marquis de Pombal, the prime minister of King José I throughout his reign from 1750 to 1777. It is the action for which Pombal is best known, but he was an exceptionally energetic and ruthless ruler who attempted to transform most aspects of his country’s economy and society. The historian Leo Gershoy called him “the most spectacular and dynamic reformer of the century”– a large claim to make when writing about the age of Peter the Great and Catherine the Great of Russia, Frederick William I and Frederick the Great of Prussia, Maria Theresa and Joseph II of Austria and their minister, Prince Kaunitz.

Kenneth Maxwell’s new biography of Pombal is a remarkable achievement. In only 166 pages of text, in which room has also been found for forty–seven illustrations, he explains developments in Brazil as well as in Portugal, places both countries in their world setting, expounds the minister’s career, his aims and actions, and then discusses them as a test case of enlightened despotism  – all with evident mastery and relish. The book is based on extensive research, which has yielded some splendidly pointed quotations. If much of it has already figured in Maxwell’s Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal, 1750–1808,2 his concentration on Pombal himself in this biography has led him to consider many matters not relevant to the earlier book, such as educational reform and the rebuilding of Lisbon, with which Pombal was deeply involved. Pombal represents an immense advance on anything previously published on its subject in English, and, so far as I know, there is nothing comparable to it in any language.

The first problem about Pombal is his name. He was born in 1699 into a gentry family, as Sebastião José de Carvalho e Melo. In 1759 he was created count of Oeiras, and only in 1769 marquis of Pombal. His career started…

….

The New York Review of Books. April 18, 1996.


[1] O Iluminismo, ou ‘século das Luzes’, foi um movimento intelectual da segunda metade do século XVII nos países mais avançados da Europa, caracterizado por uma visão de mundo inteiramente naturalista, em contrapartida à visão supernaturalista que até então dominava. Embora o naturalismo já estivesse bem assentado nas mentes mais avançadas do século XVII,  foi apenas no século XVIII que as pessoas ordinárias começaram a se interessar tanto pelas ciências naturais quanto pelas ciências sociais e políticas.

[2] Dona Maria I conhecida como ‘a rainha louca’ foi eventualmente interditada, sendo que o governo de Portugal passou para o Príncipe Regente D. João, que após a morte de Dona Maria I passou a ser D. João VI.

[3] A Royal Society é uma das primeiras academias de ciência do mundo, fundada em Londres em 1660.

[4] É pertinente lembrar a situação política da época tanto Grã Bretanha quanto na Áustria.  Na Grã Bretanha, o monarca reinante era George II (r. 1727-1760), da casa de Hannover, escolhida pelo parlamento para ascender ao trono Britânico em 1714, tomando o lugar da casa dos Stuart. Precisamente no reinado de George II, Charles Edward, filho de James Francis Stuart e bisneto de James II, o último rei Stuart da Grã Bretanha, chega à Escócia para tentar reaver o trono britânico, provocando uma série de batalhas, sendo a última a de Culloden, em abril de 1746. Na Áustria, o poder monárquico centrava na Imperatriz Maria Teresa (r. 1740-1780), e não no seu marido, Francisco (François Étienne ou Francico Estevão), que era natural de Lorena (atualmente na França), o qual foi eleito Sacro Imperador Romano, com a designação de Francisco I.  Maria Teresa e Francisco I tiveram dezesseis filhos, dentre os quais a ultima rainha da era pre-revolucionaria da Franca, Maria Antoinette. (1755–1793).

[5] Maria Ana Josefa de Áustria (Linz, 7 de setembro de 1683 – Lisboa, 14 de agosto de 1754) era filha do imperador Leopoldo I, e da sua terceira mulher, a condessa Leonor Madalena. Era irmã dos imperadores José I e Carlos VI, também pretendente ao trono espanhol, e meia-irmã de Maria Antônia de Áustria, eleitora da Baviera, entre outros. Foi rainha consorte de Portugal de 1708 a 1750, enquanto mulher do Rei D. João V de Portugal. Três dos seus filhos sentaram-se no trono: D. José, Rei de Portugal, D. Pedro, rei-consorte de Portugal pelo seu casamento com a sua sobrinha, e D. Maria Bárbara, Rainha de Espanha pelo casamento.

***

Este artigo foi publicado em PortVitoria, revista semestral da cultura ibérica no mundo.

A revolução bolivariana. O perigo do conhecimento pequeno

Jo Pires-O’Brien

O conhecimento pequeno é uma coisa perigosa. Beba do fundo ou nem sequer prove da fonte Pieriana, pois os goles rasos intoxicam o cérebro, e o beber farto nos torna sóbrios outra vez. A. Pope, 1711

A antiga máxima de que ‘o conhecimento pequeno é uma coisa perigosa’ que Alexander Pope imortalizou no seu poema ‘An Essay on Criticism ‘(Um ensaio sobre a crítica), foi validada recentemente por Hugo Chávez (1954-2013) através da Revolução Bolivariana deslanchada na Venezuela. A fim de explicar o perigo do conhecimento pequeno Pope buscou inspiração na lendária fonte do conhecimento de Piéria da mitologia grega, cujas nove nascentes representam as nove musas das artes ou ciências: Clio, Euterpe, Tália, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia e Calíope, filhas de Zeus e Mnemósina. Apenas o verdadeiro conhecimento confere a sobriedade, mas para ganhá-lo é preciso beber da parte mais funda, a única capaz de conter a água das nove nascentes. Os que vão à fonte de Piéria mas bebem apenas da parte rasa ganham tão-somente o conhecimento limitado, que embriaga o espírito com uma confiança infundada.

A Revolução Bolivariana de Chávez foi um catálogo de erros que tipificou o que Pope quis dizer quando afirmou que o conhecimento pequeno era algo perigoso. Apesar da precaríssima educação formal, o antigo paraquedista do exército venezuelano aprendeu sozinho os princípios da teoria político-econômica de Karl Marx e Friedrich Engels incluindo o jargão marxista que permitiu que interagisse com certas lideranças da Esquerda Internacional. Tais contatos certamente contribuíram para validar as suas aspirações políticas e em 1982, Chávez foi um dos fundadores do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR200) voltado a implantar o socialismo na Venezuela. Foi através deste que Chávez liderou o malogrado levante insurrecional de 4 de fevereiro de 1992 que fez com que fosse preso. Apesar de Chávez ter sido subsequentemente perdoado, a sua prisão fez dele um herói do povo e foi o seu bilhete para alcançar o poder político nas eleições de 1998.

A trajetória de Chávez ao poder também foi facilitada pela recessão econômica que a Venezuela vinha amargando há quase duas décadas devido ao baixo preço do barril de petróleo no mercado internacional. A Esquerda venezuelana regozijava-se com o cenário, afirmando que a má situação econômica era uma prova da falha do capitalismo e sua economia de mercado. Nos seus discursos de candidato Chávez fez bom uso da má conjuntura econômica apontando culpados e prometendo a redenção. Embora isso não seja importante depois do fato, é claro que os cidadãos mais sensatos ficaram alarmados com as tendências messiânicas de Chávez. Entretanto, Chávez não foi eleito por cidadãos sensatos mas por cidadãos mesmerizados que tampouco se preocuparam com a sua total falta de experiência governamental.

A Esquerda venezuelana teve outra grande oportunidade quando logo após a eleição de Chávez o preço do barril petróleo disparou. Em fevereiro de 1999 quando Chávez tomou posse do governo da Venezuela, o tesouro nacional já estava em franco crescimento. A recuperação econômica da Venezuela deu a Chávez uma oportunidade que os seus antecessores não tinham desde a década de setenta. Logo no seu primeiro governo Chávez começou a introduzir medidas iliberais como a interferência na liberdade de imprensa e a busca ativa de mais poderes para si próprio. Em 2002, Chávez foi destituído por uma junta militar após uma onda de violência entre ‘chavistas’ e opositores. Após um brevíssimo interregno de governos provisórios, Chávez recuperou o cargo. Nas eleições presidenciais de dezembro de 2006 Chávez foi reeleito com 63 por cento dos votos. Aproveitando o apoio da maioria da população Chávez deu início à socialização da Venezuela, nacionalizando as indústrias chaves e o que ainda havia em mãos privadas da indústria do petróleo. Em 2007, Chávez introduziu um projeto de mudanças constitucionais que foi rejeitado por uma margem estreita. Entretanto, a versão mais moderada mas que incluía a reeleição indefinida do cargo de presidente, introduzida em 2009, foi aprovada. Apesar de ter sido diagnosticado com câncer no final do seu mandato, Chávez concorreu e venceu a eleição presidencial de dezembro 2012, mas faleceu antes da data da sua inauguração. O seu vice, Nicolas Maduro (1962- ), assumiu a presidência e se comprometeu a levar adiante as políticas de Chávez.

A Revolução Bolivariana foi uma vitória de Pirro. Para conseguir a significativa redução na desigualdade da qual os chavistas se exultavam, Chávez gastou a absurda quantia de um trilhão de dólares. Com tal quantia era possível fazer com que todos os 29,3 milhões de habitantes da Venezuela ficassem ricos. Qualquer país que disponha de receita adicional, como ocorreu com a Venezuela devido ao salto do preço do petróleo, pode facilmente reduzir sua pobreza e encurtar as diferenças de renda entre os mais pobres e os mais ricos, sem ter que abrir mão das instituições garantidoras do equilíbrio dos poderes e da liberdade.

O disparo no preço do petróleo internacional foi uma contingência que poderia ter elevado a Venezuela a um dos grandes poderes das Américas. Mas no final, foi bom mesmo para a Esquerda venezuelana e para o próprio Chávez, que regozijou-se no seu papel de ídolo do povo. Não são poucos os peritos que acreditam que Chávez foi um desequilibrado. De qualquer forma, ele gastou mal o dinheiro da Venezuela, pagando um preço descomunal pela redução da desigualdade que obteve. Dezessete países Latino-Americanos conseguiram reduzir a desigualdade no mesmo período, gastando muito menos.

Dentre os muitos sintomas de distúrbios de personalidade que Chávez mostrou desde o início de sua trajetória política, o principal foi apresentar-se como um salvador da pátria, a fachada típica do delírio da falsa certeza. Chávez não foi um assassino de massas como Mao Zedong, Hitler ou Stalin, mas cometeu fraudes graves contra o povo venezuelano ao esbanjar recursos na sua Revolução Bolivariana bem como pela sua decisão de vender petróleo por um preço abaixo do mercado para seus cupinchas.

Os venezuelanos ainda terão que tolerar a deficiente política da Revolução Bolivariana até o final da gestão de Maduro em 2019. Felizmente o chavismo venezuelano perdeu parte do seu mojo após as eleições parlamentares de dezembro de 2015 o quando a coalizão União Democrática conquistou 99 cadeiras na Assembleia contra apenas 46 do partido Socialista de Maduro. A reação de Maduro à derrota nas urnas foi reafirmar a sua intensão de dar continuidade à Revolução Bolivariana. Tal afirmação dá mostra da obsolescente retórica empregada apenas pela ala mais inculta da Esquerda Internacional, da qual Maduro e outros tantos Latino-Americanos são meros vassalos. A Revolução Bolivariana na Venezuela foi um produto do delírio do pequeno conhecimento e uma lição para quem quer que queira aproveitar.
Continuar lendo “A revolução bolivariana. O perigo do conhecimento pequeno”

O fascínio dos ditadores

Joaquina Pires-O’Brien

O teorista social Max Weber colocou o carisma como uma das três fontes de poder, ao lado do poder legal e do poder tradicional. Weber também reconheceu que a pessoa carismática é uma autoridade personalizada, que consegue impor sua vontade mesmo quando há oposições por parte de outros atores.  Via o poder como uma ascendência, uma capacidade de fazer com que as pessoas obedeçam por si próprias ao indivíduo carismático. Uma análise comparada das biografias de Joseph Stálin (1879-1953), Adolf Hitler (1889-1945) e Mao Zedong (1893-1976), os três maiores ditadores do século vinte, mostra o carisma como denominador comum dos três líderes.

Stalin, o primeiro dos ditadores acima mencionado, foi o responsável pela morte de quase seis milhões de pessoas entre prisioneiros dos gulags e pessoas que morreram na fome da Ucrânia. Apesar de tudo Stalin exercia um enorme fascínio tanto dentro quanto fora da União Soviética. Um exemplo do fascínio de Stálin é o trecho a seguir, uma nota publicada no Diário de Moscou, escrito por um narrador que estava acompanhado de um jovem poeta chamado Boris Pasternack (1890-1960), um protegido de Stalin que uma década depois enxergaria a verdade sobre o mesmo:

O excitamento do auditório! E Ele ficou um tanto cansado, pensativo e majestoso. Dava à gente uma sensação de poder, uma enorme confiança na autoridade, e ao mesmo tempo, algo de feminino e macio. Eu olhei ao meu redor. Todo mundo trazia [no semblante] fascinação, enternecimento, inspiração e um sorriso nos olhos. Vê-lo – simplesmente vê-lo– que felicidade para todos nós. … Quando aplaudido, ele tirou seu relógio de bolso e o mostrou aos expectadores com um sorriso prazeroso. Todos cochichávamos uns com os outros, ‘O relógio dele, o relógio dele, ele está apontando para o relógio dele,’ e quando estávamos saindo, nós mais uma vez pensamos naquele relógio enquanto apanhávamos nossos casacos e chapéus… Pasternak e eu caminhamos juntos para casa e nós dois estávamos jubilantes de alegria(1).

O carisma de Stalin perdurou por um bom tempo depois de sua morte, ainda mais em comparação com o seu sucessor, Nikita Kruschev. Quando Krushev denunciou os crimes de Stálin durante uma seção fechada do Vigésimo Congresso do Partido Comunista, no meio do seu discurso uma voz da audiência o interrompeu: “Camarada onde é que estava você quando tudo isso acontecia?” Kruschev parou. “Quem disse isso?” ele bracejou. Ninguém se moveu. “Quem ousou dizer isso?” ele tornou a perguntar, e mais uma vez ninguém respondeu. Kruschev então voltou a falar com calma e disse: “Era ali mesmo que eu estava”. E ao final do discurso, apenas o silêncio completo do auditório.

Stalin foi também cultuado fora da União Soviética, graças à máquina de propaganda do estado soviético. Dentre os diversos intelectuais latino-americanos que deixaram um registro de sua admiração pelo ditador talvez o mais notável tenha sido o poeta chileno Pablo Neruda, como pode ser constatado nos versos abaixo sobre seu herói.

En tres habitaciones del viejo Kremlin

vive un hombre llamado José Stalin.

Tarde se apaga la luz de su cuarto.

El mundo y su patria no le dan reposo.

Otros héroes han dado a luz una patria,

él además ayudó a concebir la suya,

a edificarla

a defenderla.

Su inmensa patria es, pues, parte de él mismo

y no puede descansar porque ella no descansa.

En otro tiempo la nieve y la pólvora

lo encontraron frente a los viejos bandidos

que quisieron (como ahora otra vez) revivir

el knut, y la miseria, la angustia de los esclavos,

el dormido dolor de millones de pobres.

Él estuvo contra los que como Wralgel y Denikin

Fueron enviados desde Occidente para «defender la

Cultura».

Allí dejaron el pellejo aquellos defensores

de los verdugos, y en el ancho terreno

de la URSS, Stalin trabajó noche y día.

Pero más tarde vinieron en una ola de plomo

los alemanes cebados por Chamberlain.

Stalin los enfrentó en todas las vastas fronteras,

en todos los repliegues, en todos los avances

y hasta Berlín sus hijos como un huracán de pueblos

llegaron y llevaron la paz ancha de Rusia. (2)

O segundo ditador carismático analisado neste ensaio é Hitler, cujo poder de sedução é evidenciado pela seguinte citação do sindicalista Anton Dexteler (1884-1942), do Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP) fundado em 1919:

Hitler era um deleite de assistir”. “Drexler mal conseguia conter seu excitamento: ‘Quando o palestrante terminou eu corri em sua direção, agradeci a ele pelo que havia dito e lhe pedi que aceitasse o panfleto que trazia para ler, porque nós precisávamos de pessoas como el.

Parte do carisma de Hitler era devido à sua retórica. Seus discursos eram sempre num linguajar simples e direto, e sentenças curtas salpicadas de slogans carregados, onde tudo era absoluto, irrevogável e final. Hitler era um adepto fervoroso da doutrina Germano-cêntrica baseada em ideias errôneas sobre raça e cultura, como a ideia de que os povos germânicos constituíam uma raça pura e superior e que devido a isso a Alemanha era o sucedâneo natural da civilização clássica Greco-românica. Como essa doutrina era também a doutrina do seu partido, então renomeado Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), o partido Nazista, não foi difícil para ele inculcar a ideia de que ele era a pessoa certa para transformar a Alemanha no império a que estava predestinada. Com a vitória do Partido Nacional Socialista em 1932, Hitler chegou ao poder. Hitler tinha uma boa noção do poder da imagem. O título de “Führer” que adotou e cujo significado literal é “Lorde” ou “Senhor”, foi promovido no sentido de resgatador do prestígio da Alemanha após a humilhação do Tratado de Versalhes. Hitler empregou ao máximo a sua imagem para acumular mais poderes, orquestrando mudanças constitucionais e até criando uma igreja do Terceiro Reich que misturava princípios cristãos com misticismos.

Hitler foi o responsável pela morte de cerca de 12 milhões de pessoas, contando apenas civis e pessoas que morreram nos campos de concentração. A maioria dos seus colaboradores mais próximos tinham distúrbios graves de personalidade, conforme constatado pelos psiquiatras que examinaram as personalidades dos acusados de crimes de guerra no tribunal de Nuremberg. Eles ficaram impressionados com a insegurança latente de Rodolfo Hess, que até sua fuga para a Escócia em 1941, tinha sido o segundo homem do Terceiro Reich. Hess, que acompanhara Hitler desde o início de sua trajetória política, tinha uma veneração religiosa pelo Führer, quem ele acreditava ser um enviado de Deus.

O terceiro ditador descrito é Mao Zedong, anteriormente conhecido como Mao Tse-tung, cuja trajetória no poder deixou um saldo de mortos estimado entre 49 e 78 milhões. Mao foi um dos fundadores do Partido Comunista Chinês (CCP), criado 1921, e em 1945 ele passou a liderar o partido, em meio a uma Guerra Civil entre nacionalistas e comunistas. Com a vitória do CCP em 1949, Mao chegou ao poder e criou a República Popular da China.

Uma evidência do poder carismático de Mao é dada por Zhang Hanzji, sua professoara de inglês: “Eu fiquei pasmada com a força da sua personalidade. Ele era inteligente e conhecedor, razoável e considerado”(3). Zhang era uma diplomata, que a despeito de uma infância trágica de criança abandonada, havia conseguido chegar aos corredores do poder. Ela conheceu Mao em 1963 quando acompanhou seu pai adotivo, diretor de um instituto de pesquisa, a uma festa de aniversário em homenagem a Mao. Pablo Neruda dá outra evidência do poder carismático de Mao, na seguinte poesia a ele dedicada:

Frente a Mao Tse-tung

el pueblo desfilaba.

No eran aquellos

hambrientos y descalzos

que descendieron

las áridas gargantas,

que vivieron en cuevas,

que se comieron raíces,

y que cuando bajaron

fueron viento de acero,

viento de acero de Yennan y el Norte.

Hoy otros hombres desfilaban,

sonrientes y seguros,

decididos y alegres,

pisando fuertemente la tierra liberada

de la patria más ancha.(4)

Embora o carisma possa ser usado como uma força positiva, na maior parte das vezes isso não ocorre. O grande problema dos líderes carismáticos é a excessiva autoconfiança, a ponto deles próprios acreditarem que são infalíveis. Entretanto, conforme um conhecido aforismo, “é possível enganar o todo o povo por algum tempo e até uma parte do povo por todo o tempo, mas não é possível enganar todo o povo por todo o tempo” (5). Como mostra a psicologia, a insegurança faz com que certas pessoas se apeguem de forma exagerada aos carismáticos. Isso explica por que os líderes carismáticos costumam viver cercados de sicofantas formados quase sempre por pessoas inseguras que precisam da sua força superior. Weber , que nem psicólogo era, explicou a relação entre carisma e poder: o carisma tem poder e o poder tem carisma. Os ditadores carismáticos aprendem desde cedo a alavancar a insegurança das pessoas com promessas de que usará seu poder para realizar algum desígnio do povo.

Existe um círculo vicioso na ascendência que o carismático tem sobre as outras pessoas. O que é preciso para interromper tal circuito vicioso não é inteligência e tampouco o conhecimento. Os exemplos de Stalin, Hitler e Mao mostram que o carisma desses ditadores seduziu não só as pessoas comuns mas simples mas também os intelectuais, artistas e cientistas. A chave capaz de romper o círculo vicioso do poder do carismático que protege os ditadores e os bullies desse mundo é a razoabilidade. À medida que a população vai ficando mais esclarecida, também vai ficando mais imune à sedução do carisma. Quem sabe um dia o fascínio dos ditadores não venha a se tornar mais um atavismo da condição humana. 

Notas:

(1)    Diário de Moscou, versão inglesa de Emma Gerstein, publicada no post de Nina Witoszek de 07/05/2010.

(2)    Pablo Neruda, Obras completas I. RBA. Barcelona, 2005, pág. 746; citado por José María García de Tuñon Aza  em El Cattobeplas, 122, abril 2012, p. 9.

(3)     Tutor to a Tyrant: the life of Chairman Mao’s English teacher”, em http://www.independent.co.uk/news/world/asia/, 08/08/2011.

(4)    Pablo Neruda, Obras…, pág. 931. citado por José María García de Tuñon Aza  em El Cattobeplas, 122, abril 2012, p. 9.

(5)    Frase citada por Abraham Lincoln e atribuída a Phineas Barnum, um comediante americano do século dezenove dotado de uma enorme capacidade de sintetizar ideias e valores do dia a dia.


Agradecimento: Carlos Pires, revisor.

Jo Pires-O’Brien é editora da revista PortVitoria, sobre a cultura ibérica no mundo.

***
Check out PortVitoria, a biannual digital magazine of current affairs, culture and politics centered on the Iberian culture and its diaspora.

PortVitoria offers informed opinion on topics of interest to the Luso-Hispanic world. Its content appears in Portuguese, Spanish &/or English.

Help PortVitoria to continue by putting a link to it in your blog or Facebook account.