O poder duradouro do Charlatão


O poder duradouro do Charlatão

Claus Leggewie

LARB – Los Angeles Review of Books – 11 de Fevereiro de 2022

EM 16 DE OUTUBRO DE 1937, uma certa Grete de Francesco, de Milão, enviou uma carta manuscrita de 12 páginas ao “estimado Sr. Thomas Mann”, juntamente com um exemplar do seu livro recém-publicado, Die Macht des Charlatans (O poder dos charlatães). Embora desconhecida para o autor mundialmente famoso, Francesco insistiu que Mann era o “santo padroeiro dos intelectuais” por detrás de seu próprio trabalho: “Este livro nunca teria sido escrito”, explicou ela, “se não fosse pelo alerta” fornecido em 1930 em seu livro Mario e o magico[1].

Como mostram os seus diversos sublinhados, Mann leu a carta com atenção e até atendeu o pedido de Francesco, de recomendar que sua obra fosse resenhada em um periódico de destaque. O livro obteve ainda mais sucesso nos Estados Unidos depois de ter sido lançado pela Yale University Press em 1939 (em uma tradução de Miriam Beard), eventualmente tornando-se conhecido entre os escritores exilados bem como na Alemanha de Hitler, onde as autoridades reconheceram o seu potencial explosivo e prontamente destruíram o maior número de cópias que conseguiram. Desde então, a obra de Grete de Francesco foi amplamente esquecida – até que, em 2021, a editora alemã Die Andere Bibliothek lançou uma reimpressão brilhantemente comentada.  

Neste ensaio, eu reflito sobre a atualidade desse relançamento. Antes, entretanto, alguns fatos básicos sobre a autora do livro. Ela nasceu em Viena em 1893, sendo que o seu nome de registro era Margarethe Weissenstein. Estudou história da arte em Munique; casou-se com um engenheiro, Giulio de Francesco, com quem viveu em Milão e, mais tarde, em Berlim. Em 1931, Francesco se tornou a primeira mulher a se formar na progressiva Academia Alemã de Política, com uma tese intitulada “A Face do Fascismo Italiano”. Trabalhando como escritora e jornalista, ela costumava fugir da perseguição mudando-se constantemente: de Viena a Praga, Paris, Basileia, Zurique e Milão. Após esta última cidade ser sido ocupada pelos alemães em 1943, e pelas SS em outubro de 1944, Francesco foi presa. Dois meses depois, ela foi transportada para o campo de concentração de mulheres em Ravensbrück, onde presumivelmente foi morta pouco depois, tornando-se vítima do maior de todos os charlatães, Adolf Hitler.

O livro de Francesco é um fascinante exame histórico da figura do charlatão, a qual permanece válida. Baseando-se em uma variedade de fontes históricas, Francesco traça este caminho através da Europa moderna, quando a figura do charlatão habitou em alquimistas, curandeiros, mesmerizadores, adivinhos e espertalhões. Os indivíduos que fazem uma aparição no livro incluem fabricantes de ouro há muito esquecidos, como Leopold Thurneißer e Marco Bragadino, e ocultistas como o Conde Alessandro di Cagliostro. Francesco, que às vezes aparenta ser uma socióloga da linha da fenomenológica de Walter Benjamin ou de Siegfried Kracauer, ao invés de uma historiadora da arte, consegue destilar os traços e comportamentos de todas essas figuras históricas em um arquétipo. [1]

Conforme acima mencionado, o livro de Mann foi interpretado de maneira muito diferente – pelos seus leitores, por filólogos profissionais e até pelo próprio Mann. Por exemplo, por acaso a figura do ‘mago’ na narrativa representaria uma alusão direta aos demagogos fascistas da época, Mussolini e Hitler, ou, estaria lidando com mais um Künstlerroman (romance de arte), como em seu outro livro Tonio Kröger[1] (1903)? Ou por acaso a narrativa simplesmente monta a uma incursão ao reino do oculto, que tanto fascinou Mann durante a década de 1920? Por Acaso estaria ele lutando com a sua homossexualidade enrustida? Ou simplesmente ele desejava encantar os seus leitores descrevendo a “trágica experiência de viagem” de uma família alemã, conforme sugerido no subtítulo original do livro? O início da narrativa faz parecer assim, mas apenas se ignorarmos o prenúncio no primeiro parágrafo de um “final horrível”. No entanto, os sinais da incursão furtiva do fascismo eram inconfundíveis:

Havia brigas por bandeiras, disputas sobre autoridade e precedência. Os adultos se juntaram, não tanto para pacificar, mas para julgar e enunciar princípios. Frases foram lançadas sobre a grandeza e a dignidade da Itália, frases solenes que estragaram a diversão. Nós vimos a retirada dos nossos dois pequeninos, confusos e magoados, e foi proposto que a situação fosse explicada. Essas pessoas, nós dissemos a eles, estavam apenas passando por um certo estágio, por algo tipo uma possível doença; não muito agradável, mas provavelmente inevitável.

As narrativas continuam chegando até que, após mais ou menos 10 páginas do livro, o mago titular finalmente faz a sua entrada. ‘Cavaliere Cipolla’ (Dom Cebola), animador “impulsionador, ilusionista, conjurador”, conforme ele próprio se descreve; trata-se de uma figura repulsiva, com um corpo deformado que mesmeriza o seu público, os coloca em transe, e os engana e humilha. “Você certamente perguntará”, o narrador se dirige ao leitor, “por que nós não escolhemos este momento para ir embora – e eu devo continuar devendo-os uma resposta. Eu não sei porque. Eu não consigo me defender”.

É nesse clima de passividade coletiva que Mario – um garçom de café conhecido da família do narrador, que havia acompanhado os procedimentos “de braços cruzados, ou então com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco” – é chamado ao palco: “’Beije-me!’, disse o corcunda. Confie em mim, eu te amo. Beije-me aqui”. E com a mão, braço e dedo mindinho estendidos, com o dedo indicador ele apontou para a bochecha, bem perto da boca. E Mario se curvou e o beijou.”

Infelizmente, desta vez o mágico foi longe demais: o humilhado Mario atira em Cipolla e, na “comoção indescritível” que se segue, os turistas alemães saem às pressas da cena do crime, com as crianças perguntando se aquilo significava o fim do show de mágica. “Sim, nos garantimos a eles, esse foi o fim”, diz o narrador. “Um fim de horror, um fim fatal. E, no entanto, uma libertação – pois eu não poderia, e não posso, mas acho que sim!” Um assassinato ao estilo deus ex machina (o deus da máquina; a providência divina), como o catalisador de uma virada para melhor?

Em seu estudo da figura do charlatão, Francesco cuidadosamente evitou tirar conclusões para o seu próprio tempo. E, no entanto, as suas observações sobre a natureza e os mecanismos do charlatanismo são valiosas não apenas para a era do fascismo, mas também para o início do século XXI.

O charlatão — ou o fingidor, como possivelmente diríamos — é mais astuto do que inteligente, e, possui um conhecimento superficial. Ele não imita; ele distorce, inclusive a realidade, por meio de suas falsidades. Ele confia na ciência como espelho e antagonista, pervertendo todas as evidências empíricas e as sofisticações teóricas, e caricaturando-a através do uso de terminologia mal compreendida. Os charlatães não formam uma profissão unificada: você os encontrará em todas as classes e linhas de trabalho; o que importa é a orientação para seu próprio ganho. Enquanto que o pedante considera seriamente cada detalhe, o charlatão está bem ciente da trivialidade daquilo que ele prega; o primeiro engana-se a si próprio, e o ultimo aos outros. Assim, o charlatão não é nada sem seguidores, um grupo de adeptos formado principalmente por indivíduos fracos e decepcionados que ele ojeriza e despreza – eles querem ser enganados, afinal, especialmente em tempos de crise e turbulência.

O charlatão está relacionado com o impostor, o alquimista, o vidente e o mago; no entanto, enquanto estes se dedicam ao negócio da transformação, a arte do charlatanismo limita-se a fazer promessas impossíveis de cumprir. Nenhuma falsificação científica, nenhum decreto político deterá o charlatão ou deterá a multidão de olhos arregalados. Seu único oponente real é o indivíduo cético, ou seja, aquilo que Francesco chama de “a pequena minoria de homens e mulheres incorruptíveis que viviam, desconhecidos e até evitados, entre o rebanho de ‘crentes’, como se fossem portadores de uma infecção”.  Sem dúvida ele pensava em Hitler, quando concluiu seu estudo afirmando que “foram esses indivíduos solitários” que sempre foram “chamados para liderar a luta contra o poder do charlatão”.

Na época da publicação de Mario e o magico, Mann havia descartado qualquer interpretação estritamente política de sua alegoria, embora a narrativa se passe muito claramente na Itália de Mussolini, com grande parte da população cheia de entusiasmo nacionalista. Mas depois que Hitler foi feito chanceler, e especialmente à luz de seu belicismo, Mann passou a ver sua novela de forma diferente, observando em sua palestra de 1940 “On Myself” (Sobre Eu): A alusão moral-política, nunca diretamente afirmada, foi então muito bem entendida muito antes de 1933 na Alemanha: entendida com simpatia ou aborrecimento! — a advertência sobre a violação ditatorial, superada e aniquilada na libertadora catástrofe humana da conclusão.” Um ano depois, ele escreveu ao pioneiro do rádio Hans Flesch: “Só posso dizer que vai longe demais ver em Cipolla simplesmente uma máscara de Mussolini. Então, novamente, é claro que a novela tem um claro significado moral-político.” [2]

O “aviso sobre violação ditatorial” é tão oportuno agora quanto foi em 1930 – e não devemos esperar por outro “1940” antes de levá-lo a sério. Os charlatães menores abundam hoje, como recentemente ficou evidente, por exemplo, nos charlatães que promovem curas falsas do COVID-19 em oposição à vacinação. Em muitos países, tais dissidentes autodenominados dissidentes ou Pensadores Laterais (em inglês Mavericks; em alemão Querdenker) surgiram, trabalhando em frenesi devido à sua convicção de que são vítimas de uma grande conspiração instigada pelo governo, pelo capitalismo global ou pelos judeus (ou por todos esses combinados). Assim como seus antepassados históricos, tão vividamente descritos por Francesco, os charlatães do tipo do Cipolla (Cebola) hoje empregam argumentos pseudocientíficos para mobilizar um grande número de seguidores, gerando uma destrutividade comparável à dos fascistas nas décadas de 1920 e 1930.

Em 1949, o sociólogo Leo Löwenthal e o psicólogo Norbert Guterman — que como Mann, eram membros da comunidade de expatriados da Califórnia, nos Estados Unidos — publicaram um estudo intitulado Prophets of Deceit: A Study of the Techniques of the American Agitator (Os profetas da artimanha: um estudo das técnicas do agitador americano). O livro de Löwenthal e Guterman lida com figuras como o fascista nascido nos Estados Unidos William Dudley Pelley, ou os ativistas de direita Elizabeth Dilling e Joseph P. Kamp, todos eles sendo antissemitas fervorosos, anticomunistas e contrários ao New Deal de Roosevelt. De Huey Long a George Wallace e a Donald Trump, podemos traçar uma longa linhagem na genealogia do charlatão americano.

O livro Prophets of Deceit (Os profetas da artimanha) examina a atração do autoritarismo de meados do século, a disposição do público de massa de se subordinar a uma figura líder, bem como a acreditar em teorias da conspiração e a desprezar as elites e os intelectuais liberais. O adepto, escrevem seus autores, “continua sendo um azarão frustrado, e tudo o que o agitador (ou militante) faz é mobilizar os seus impulsos agressivos contra o inimigo. […] Assim, a imagem do adepto serve indiretamente para condicionar o público à disciplina autoritária.” Para o agitador, o adepto pularia da Trump Tower, ou no mínimo perdoaria o seu herói por atirar em alguém na Quinta Avenida.

Hoje em dia, a questão crucial é como a sociedade civil lida com o fascismo passado e futuro, a que distância será capaz de se manter – ética e estrategicamente – digamos, do supremacismo branco e do antissemitismo. Recordemos o narrador de Mann e sua pergunta: “Por que não escolhemos este momento para ir embora?” Em outras palavras, por que não reunimos o mesmo espírito de resistência de Mario ou, de preferência, um tipo de oposição mais civilmente engajada? As analogias com a situação de hoje – o surgimento de novas autocracias, a onipresença de teorias da conspiração, a desconfiança generalizada dos governos e das elites – não podem ser enfatizadas o suficiente.

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Claus Leggewie é um cientista político que leciona na Universidade de Giessen (Alemanha), onde ocupa a cátedra Ludwig Boerne. Em 2021, foi membro honorário da Casa de Thomas Mann, em Pacific Palisades, na California. Ele lecionou Estudos Europeus na Universidade de Nova York e recebeu o Prêmio Sander por contribuições notáveis ​​para a relação acadêmica entre o mundo de língua alemã e os Estados Unidos. Ele está particularmente interessado em como parar a regressão democrática das sociedades liberais.

[1] Etimologicamente, charlatão(em italiano, ciarlatano), é derivado de ciarlare (falar). Na Itália medieval, a aldeia de Cerreto di Spoleto, na Úmbria, tinha a fama de ter gerado um número especialmente alto desses charlatões. O dicionário Merriam-Webster define o charlatão como “aquele que apresenta pretensões geralmente vistosas de conhecimento ou habilidade” e lista esses termos como sinônimos: “falso, falsário, faquir, fraudador, embusteiro, farsante, impostor […], falso, fingidor […], impostor, boateiro, aliciador, dissimulado.”

[2] Ver Nicholas Martin, “Thomas Mann’s Mario und der Zauberer: ‘Simply a Story of Human Affairs’”, em The Text and Its Context, ed. Nigel Harris e Joanne Sayer (Frankfurt: Lang, 2008), 168.


[1] Veja mais aqui (NT).

[2] Leia o ensaio literário Carlos Russo Jr. No Jornal Opção (NT).

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