A noção de excelência na História


Joaquina Pires-O’Brien

A história do Ocidente mostra que a noção de excelência já existia nas antigas sociedades gregas e romanas, sendo representada pela palavra grega areté (ἀρετή) e pela palavra latina excelentia. Tanto os sábios gregos quanto os sábios latinos aprenderam a distinguir entre a verdadeira excelência e a glória. Na antiguidade grega clássica, a palavra  ‘kratos’, que significa ‘governo’ foi juntada à palavra  areté  para formar o termo ‘aristocracia’, que descrevia o  ‘governo dos excelentes’. Quando Sócrates mostrou que a excelência não era necessariamente atrelada à fama, isso irritou bastante o ‘hoi polloi’, inclusive os 500 membros do júri que o condenou à morte.

No mundo contemporâneo há uma presunção de que os cidadãos eleitos para cargos governamentais são os mais valorosos da sociedade, razão pela qual são tratados de ‘excelência’.  Atualmente, ninguém em sã consciência imagina a democracia como sendo o governo dos menos capazes. Entretanto, uma parcela significativa do eleitorado é tão ignorante que ignora até a própria ignorância. O despreparo desses eleitores faz com que somente consigam imaginar o valor quando este é acompanhado da fama.

Os sábios da antiguidade clássica não apenas aprenderam a separar a excelência da fama mas também a apreciar a relação direta que existe entre a excelência a meritocracia. Já a sociedade contemporânea, esta despreza a meritocracia pois não consegue distinguir entre o verdadeiro e o falso mérito. Este curto ensaio procura mostrar que a sociedade contemporânea perdeu a capacidade de distinguir entre a excelência e a glória, esta última representada pela fama e pelo sucesso nas redes sociais.

A tradição grega

A tradição grega acerca da excelência está contida nas obras de Homero, que conta a história de indivíduos cujas realizações são veneradas na poesia. Na Ilíada, Aquiles é descrito como o melhor guerreiro que já existiu, sendo ainda dotado de grande inteligência para imaginar estratagemas eficazes. Aquiles é tudo isso porque possui ‘areté’, isto é a excelência. Aquiles conta como a sua mãe lhe havia assegurado que a sua fama seria eterna, pois ele ganharia um ‘kleos’ imperecível. Aqui, a palavra ‘kleos’ significa reconhecimento, fama ou glória. A fama eterna de Aquiles não é sem razão, como mostra a narrativa homérica.

Na tradição grega a excelência é acompanhada da fama. Em Atenas, o tipo de excelência mais reconhecido era a do esporte, seguida do teatro, enquanto que em Esparta era a militar.

Sócrates (c. 470 – 399 AEC) e Platão (427 – 347 AEC) deram uma nova interpretação à palavra ‘areté’. Tanto como registrador do pensamento de Sócrates quanto como pensador por si próprio, Platão afirmou que a filosofia serve de guia para a vida que vale a pena, e ao ensinar a vida que vale a pena, ele apontou a importância de cada qual buscar o melhor de si próprio mesmo sem haver uma possibilidade de ser recompensado por isso. O areté passa a ser o valor de cada pessoa, o qual existe em medidas diversas, independentemente de ser socialmente reconhecido ou não. Ou seja, o areté – excelência –, não é mais ligado ao kleos – fama ou glória–, sendo simplesmente o caráter do indivíduo.

Sócrates afirmou que o caráter de cada pessoa é um projeto de vida que só termina com a morte. O indivíduo que possui o hábito de refletir não apenas sabe distinguir o certo do errado mas também conhece a si próprio; portanto, sabe que o seu próprio caráter é diminuído ao fazer algo que não deve, mesmo que ninguém tenha percebido o mal que fez. Reconhecendo que o cometimento de um ato diminuiria o seu próprio caráter, Sócrates recusou a ajuda para fugir de Atenas antes de sua execução, e no seu julgamento, afirmou preferir ser injustiçado do que cometer uma injustiça.

A tradição romana

A tradição romana acerca da excelência é parecida com a tradição grega, pois mistura as ideias de excelentia – excelência – e de glória. Marcus Túlio Cícero fez a mesma coisa que Platão e Sócrates, e separou a excelência da glória, quando reconheceu que embora fazer parte do senado romano era uma coisa gloriosa, essa glória nem sempre vinha acompanhada da excelência. Pensando nisso, Cícero separou os senadores romanos em duas categorias, os bons e os populistas, que ele chamou de optimates e populares. Os optimates eram em geral conservadores, que desejavam preservar as tradições da república como o status quo, os direitos de propriedade e o prestígio do senado. Os populares não tinham uma política fixa pois as suas ações eram planejadas para agradar às massas e ganhar o seu suporte a fim de aumentar suas chances de permanecer no poder.

A primeira visa parece que os optimates são os melhores em tudo e os populares os piores, mas é provável que ambos grupos tinham suas faltas. A maior falta dos optimates foi ter tramado e levado a cabo o assassinato de Júlio César, julgando que faziam isso para salvar a república. Como a popularidade de Júlio César era bastante grande, o povo demandou a apuração de culpados, iniciando a crise que pôs fim à república e implantou o império.

A excelência na sociedade contemporânea

O reconhecimento das pessoas excelentes é uma condição necessária para o bom andamento da sociedade, e, cada sociedade tem seus benchmarks de excelência, bem como diferentes regras ou interpretações daquilo que tem mérito, e que, por ter mérito, merece recompensa. A Idade Digital e as redes sociais que a caracteriza tem reforçado a noção errônea da igualdade das pessoas e não o reconhecimento das pessoas excelentes.  A consequência disso é o  considerável rebaixamento dos benchmarks tradicionais, sendo que uma boa parte da população perdeu a capacidade de distinguir entre a verdadeira autoridade, aquela que é necessária e desejável para o bem-estar da sociedade e para a proliferação do conhecimento, e, a falsa autoridade dos indivíduos que se inflaram através da sedução das massas nas redes sociais. Isso possivelmente explica o desprezo da sociedade contemporânea pela meritocracia, ao contrário do que os sábios do mundo clássico pregavam.

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