O desagravo a Beroso


Jo Pires-O’Brien

Em torno de 240 a.C., quando as cidades independentes da Grécia formaram a segunda Liga Aqueana (κοινὸν τῶν Ἀχαιῶν) e Roma lutava contra Cartago, o babilônio antigo já era uma língua morta embora ainda reconhecida. Foi nessa época que Beroso, um sacerdote caldeu do templo de Baal, na Babilônia, mudou-se para a ilha de Cos, na Ásia Menor (atual Turquia) onde escreveu uma trilogia em grego sobre a cultura da Babilônia, que ele dedicou a Antióquio I (c. 324–261 a.C.), monarca do reino selêucida (1) da Síria, que reinou entre 292 e 281 a.C., no leste, e de 281 a 261 em todo o país.

No seu primeiro livro, Beroso descreveu a terra da Babilônia, cuja civilização foi levada para Ipa pela divindade Oannes (Adapa), que era metade homem e metade peixe, bem como por outras divindades, incluindo ainda a lenda da criação e a sua versão da astrologia caldeia. Nesse livro, Beroso cita diversos trechos da ‘cosmogonia’ babilônica, a narrativa da criação do mundo, cujo autor seria a própria divindade Oannes. O segundo e o terceiro livros fornecem uma cronologia da história da Babilônia e da sucedânea Assíria, que começa com ‘os dez reis anteriores ao dilúvio’, passando à narrativa do dilúvio e a restauração da monarquia, com uma longa série de monarcas que reinaram ‘depois do dilúvio’, as ‘cinco dinastias’, finalmente a história mais recente dos assírios, o último reino da Babilônia, a invasão persa e a conquista de Alexandre o Grande. Mais uma vez podemos perceber os paralelos com a Bíblia hebraica na cosmogonia, no dilúvio e na preocupação com a linhagem dos reis.

Beroso ganhou o respeito dos estudiosos da Ásia Menor e da Grécia. Pensa-se que ele passou também um período em Atenas, onde uma estátua de cobre foi feita em sua homenagem. Apenas fragmentos da obra de Beroso sobreviveram. Todo o conhecimento sobre Beroso é indireto, e através das citações de Eusébio de Cesária, Flávio Josefo e Sencelos. Graças à essas citações, a literatura e a mitologia da antiga Babilônia, incluindo a Assíria e a Caldeia, chegaram até o mundo clássico.

Infelizmente, o tempo passado não mais permite estabelecer como foi que todas as cópias dos três livros de Beroso desapareceram. Entretanto, a cosmogonia babilônica que Beroso explicou nos seus livos, e cujo exemplo mais bem conhecido é a narrativa do dilúvio babilônico, certamente comprometia a pretensão da Bíblia dos hebreus de ser um livro de autoria ou de inspiração divina, sendo um motivo para uma presumível sabotagem. E se foi esse o caso, Beroso foi vindicado pelas traduções dos textos em cuneiforme sobre a Babilônia, que confirmaram o que ele narrou em grego há mais de vinte séculos.


Notas
1 Selêucida. Palavra derivada de Seleucus, um dos generais de Alexandre o Magno, que após a morte deste em junho de 323 a.C., tornou-se rei das províncias leste do império alexandrino, sendo as principais a Síria e a Mesopotâmia. A Síria Seleucida incluia, além do Iraque e a Síria, o Afaganistão, o Irã e o Líbano, mais partes da Turquia, Armênia, Turcumenistão, Uzbekistão, e Tajikistão. O reino de Seleucus tinha duas capitais, ambas fundadas around 300 a.C.: Antióquia na Síria e Selêucia na Mesopotâmia.

2. Cf. os meus postings ‘A redescobera do babilônio’  e, no meu blog Mesa Redonda, Irving Finkel e a escrita cuneiforme’.


Jo (Joaquina) Pires-O’Brien é editora da revista eletrônica PortVitoria (portvitoria.com) de generalidades, cultura e política. É autora de O homem razoável e outros ensaios (2016), uma coleção de 23 ensaios sobre os mais diversos temas da civilização ocidental, disponível na Amazon. US$ 9.99; Kindle $2.99.

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3 comentários sobre “O desagravo a Beroso

  1. Creio que todos nós viemos de uma única civilização aonde todos tinham uma única visão de mundo que era comum entre eles mas que ao longo do tempo quando os povos se dividiram esse conhecimento foram se distorcendo tipo como se fosse a brincadeira do telefone sem fio Beroso ele cita povos que viveram antes do dilúvio menciona também a criação Pou parte de divindades esses dois memoriais antigos estão registrados também na Bíblia não me parece que os autores bíblicos plagiaram esses antigos escritos de outras civilizações mas que ambos tem uma visão e uma forma de descrever Fatos e acontecimentos históricos e até divindades mas na sua própria forma de descrever talvez um relato seja mais fiel do que o outro mas o mais interessante é que apesar de algumas diferenças ambos relatam os mesmos acontecimentos

    1. Obrigada pelo comentário, Gilson. O ponto do meu artigo foi o desaparecimento dos livros de Beroso, sendo que tantos outros livros da época e até outros mais antigos sobreviveram. Independentemente das possíveis interpretações das narrativas mitológicas da antiga Babilônia e da Bíblia, fogueiras de livros são uma marca do dogmatismo.

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